Os goleadores sonham com balizas elétricas?
Primeiro, o FC Porto, com Omorodion a bisar nos 3-0 em Guimarães. Depois, o Sporting, a juntar Harder ao já habitual Gyökeres, também num 3-0 ao AVS. Mas há um segredo nesta jornada dos replicantes.
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No ofício dos golos há muitas maneiras de virar frangos, mas em Portugal uma parece hoje em ganho: o sucesso do modelo-Gyökeres, o avançado possante, fisicamente difícil de parar, capaz de meter corridas a direito no sentido da baliza adversária com um par de opositores a tiracolo, já trouxe mais replicantes, como que saídos de uma qualquer linha de montagem da Tyrrell Corporation (1). No sábado, foi Samu quem desbloqueou o jogo do FC Porto em Guimarães, marcando os dois primeiros golos do 3-0 sem espinhas com que os dragões se impuseram na cimeira do segundo lugar ante um Vitória SC até então fortíssimo mas naquele dia inofensivo. Ontem, antes de um bis do inevitável Gyökeres na baliza do mexicano Ochoa, a lesão de Pedro Gonçalves deu o mote para a estreia a titular de Harder, que fez o primeiro golo e deu a assistência para o segundo de mais um 3-0 sem grande história. Está encontrada a fórmula para o sucesso inevitável? É aqui que convém chamar a atenção para o facto de que não basta ter um avançado forte e possante na frente. É preciso enquadrá-lo. E no sucesso de Samu e Harder no fim-de-semana houve dois homens fundamentais nos enquadramentos: Francisco Moura e Hjulmand.
Se há 40 anos Eriksson abriu em Portugal a era dos jogadores “altos, louros e... toscos”, agora foi a contribuição impactante de Gyökeres para o título leonino de 2024 a dar o mote para a nova época dos replicantes, com base nos avançados altos, não necessariamente louros, mas possantes e fortes no ataque à profundidade. Tal como todos os da sua série, Manniche, o modelo original (há F80 aqui), era forte fisicamente, mas impunha-se sobretudo na resposta de cabeça a cruzamentos vindos das linhas laterais ou de fundo. Era assim o futebol daquele tempo. Houve depois evoluções nesse tipo de ponta-de-lança, valorizando-se a capacidade adivinhatória, quase cibernética, do sítio onde a bola ia cair ou a movimentação na área, o finge-que-vai-para-ali-e-afinal-depois-vem-para-aqui, mas o finalizador, que nunca tinha sido conhecido por jogar bem com a equipa, continuava a ser visto como um simples ponto final na oração – a jogada morria nele e ou era golo ou saía um remate disparatado. Já não é assim. Na era das equipas curtas, das organizações defensivas que procuram reduzir o espaço nas entrelinhas e acabam por ter de destapar atrás, o ponta-de-lança já é visto como verbo a pedir complemento direto. Se querem referências nórdicas dos idos anos 80, é mais Preben Elkjaer-Larssen que Manniche. E, até mesmo como finalizador, a forma de o ativar mudou, que os defesas não só cresceram também, e por isso são igualmente fortes no ar, como as evoluções mais recentes da espécie viram incorporado o tal chip que consegue prever onde vai cair a bola.
É muito diferente no caso do Sporting usar Harder, avançado mais direto ao objetivo, ou Pedro Gonçalves, jogador mais imprevisível em cada toque na bola e preponderante nas ligações por dentro, para criar desequilíbrios ao adversário através da abertura de um ala ou até de um médio cujo lugar ele ocupa momentaneamente. Harder até jogou bastante mais atrás no campo do que seria expectável, fazendo em termos posicionais muito daquilo que fazia na época passada Paulinho, ocupando a meia-esquerda em vez de ser um clone puro e duro das movimentações de Gyökeres no ataque à profundidade. Mas, ainda que o Sporting não tenha invertido a ordem dos três da frente – continuou em dois mais um –, o dinamarquês acabou por fazer um golo que o próprio Rúben Amorim veio depois dizer que “parecia um golo do Viktor [Gyökeres]”. No FC Porto, como bem disse Vítor Bruno, o treinador, na sexta-feira, ao ser questionado sobre a possibilidade de vir a estrear o novo avançado espanhol como titular em Guimarães, “o próprio perfil do Samu pede coisas diferentes à forma de jogar da equipa”. É evidentemente diferente para o FC Porto jogar com Samu, que tem linhas de corrida mais na vertical do campo, ou fazê-lo com Namaso, que pelo contrário se aproxima mais dos médios em desmarcações de apoio para com eles ligar e ajudar a montar uma complexa teia que solte os extremos na profundidade. A questão que se coloca é, por isso, como ativar estes replicantes. E a resposta foi dada nos jogos: com alguém capaz de ter bola nas entrelinhas e de fixar as defesas antes de os lançar.
O trabalho feito num ano por Amorim com Gyökeres – e o facto de ele ser o modelo original – já permite que o sueco faça mossa através de lançamentos de um dos centrais exteriores. Já o fazia em resposta a passes de rutura de Gonçalo Inácio e fá-lo também agora com Debast, que terá sido contratado sobretudo para isso. Mas a chave para soltar o avançado nos meios-espaços, de onde ele partirá melhor para o golo – quanto mais não seja porque está bem mais perto do que se for lançado na lateral – está na capacidade da equipa para ter bola dentro do bloco adversário e lá colocar alguém de frente para o jogo. A contribuição dada por Hjulmand no lance que desbloqueou o resultado em Alvalade foi essa mesmo: a de cumprir, noutro espaço, uma missão que Pedro Gonçalves não podia desempenhar, porque estava na bancada. Recuperou, tabelou com Gyökeres e, de frente para o jogo, lançou a dúvida na linha avense. Foi nesse ínterim em que os defesas não sabiam se haviam de ir, ficar ou acompanhar a trajetória de Harder que o médio lhe meteu a bola para a corrida vertical e a finalização. No caso do FC Porto, aquilo a que Vítor Bruno aludia era à presença dos chamados ‘trequartistas’ mais perto do avançado. A linha de cinco desenhada pelo ataque portista em Guimarães tinha João Mário aberto na direita e Galeno a dar largura na esquerda. Os meios espaços eram ocupados por Pepê – cuja arrancada pelo bloco foi fundamental no primeiro golo – e Nico González, que lá chegava vindo do meio-campo. E o problema aí eram os encaixes. Nestas coisas, quem desequilibra não é quem está: é quem aparece. E as movimentações do lateral esquerdo, Francisco Moura, sempre mais baixo em construção, para ocupar aquele espaço no bloco adversário, fixar e lançar foram fulcrais, por exemplo, no segundo golo, muito mais um “golo à Samu”, a surgir nas costas da defesa adversária, do que o primeiro.
Samu e Harder estão longe de ser projetos acabados. O espanhol parece ainda mal, sem ritmo, o que se refletiu nas cãibras que sentiu a partir do meio da segunda parte e que levou à sua troca por Namaso. O dinamarquês ainda não entende as movimentações da equipa a ponto de poder ser auto-suficiente se um dia Amorim precisar que ele seja o Gyökeres de serviço. Mas as indicações que deixaram nas estreias foram tão positivas que certamente levarão mais gente a procurar mais réplicas ainda naquela linha de montagem.
(1) – Os puristas lembrarão que em “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, a obra que originou o “Blade Runner” de Ridley Scott, Philip K. Dick chamava à empresa que construíra os replicantes The Rosen Association. Tyrell Corporation é o nome adotado apenas no cinema.
Quando falei no Discord na subvalorização de Gyökeres falava não da falta de reconhecimento imediato, que existia, mas sim na ideia de que Gyökeres era o resultado da estreia de um avançado diferente, mas que na segunda época o impacto seria diferente. Gyökeres acaba de mostrar que ele é mesmo bom e não apenas uma novidade diferente que ninguém esperava.
Gyökeres leva-me a questionar como em Portugal a força física foi sendo desvalorizada e vemos isso nos avançados Portugueses formados em Portugal, parece que só Ronaldo percebeu a importância do músculo, por regra geral podem ser altos ou baixos, mas são regra "lingrinhas". Mais do que tentar replicar no mercado de transferências, também se devia ter atenção ao treino físico e à intensidade na formação.
Tive que ler o título duas vezes mas percebi a referência e está bem desenvolvida no texto.
Só não sei é quem são esses Gyokeres e Harders e Omorodions de que o Tadeia fala. Só ouço nomes como Viktor, João, António, Samuel, Conrad. Já ninguém tem nome de jogador de futebol. Talvez estejam mesmo a tentar disfarçar a sua natureza não humana.