Os gémeos do drible
Stefano Pioli vai ter um desafio aliciante e de resultado duvidoso pela frente: fazer coabitar Leão e Chukwueze, dois dos maiores dribladores do futebol europeu, no ataque do Milan.
Todos os que jogámos futebol enquanto crianças nos lembramos daquele miúdo prodígio que pegava na bola numa das pontas do campo de asfalto e a levava até à outra, para a meter sem apelo nem agravo no espaço entre as pedras ou as mochilas que faziam de postes da baliza. Quando eu era puto até havia a moda de parar a bola em cima da linha, meter-se de gatas e fazer golo de cabeça. Alguns de nós foram esse miúdo. Mas se, como eu, não eram capazes dessas proezas individuais, não desanimem, porque o drible é uma arma tão mais poderosa quanto menos evoluído é o jogo. Fiéis aos ensinamentos de Cruijff, que nos explicou que “a bola corre mais rápido do que o homem e ainda por cima não se cansa”, as equipas modernas preferem o passe. E, no entanto, o driblador é sempre admirado como um espetáculo, uma forma de atrair público – ou não fossem os melhores entre eles os extremos, que jogam junto à linha e, por isso mesmo, mais perto dos adeptos que os veneram. Ninguém cresce a querer passar a bola como Busquets, mas muitos começam a jogar para fazer a finta de Messi. A esse propósito, a Gazzetta dello Sport de hoje faz um interessante exercício acerca da construção do Milan, onde Stefano Pioli tentará fazer coabitar Rafael Leão e Samuel Chukwueze, um extremo nigeriano por quem os rossoneri pagaram 20 milhões de euros ao Villarreal CF e que começa por prenunciar essa tendência de afastar os dribladores do público, fazendo-os jogar com o pé contrário: o que se espera é que o destro Leão parta da esquerda e que o canhoto Chukwueze saia da direita, para procurarem o espaço mais interior. Diz a Opta que Chukwueze obteve 86 dribles bem-sucedidos em 175 tentativas espalhadas pelos 2340 minutos que fez na Liga Espanhola. E que Leão meteu 77 fintas em 171 tentativas nos 2421 minutos feitos na Serie A. A Gazzetta tem números ligeiramente diferentes (79 e 88), porque o fornecedor de dados (não citado no artigo) há-de ser outro, mas soma os números e conclui que esta não é só uma dupla impressionante: é a melhor de Itália. Os 163 dribles conseguidos em conjunto por Leão e Chukwueze (167 nas contas do jornal de Milão) superam os 114 de Zaccagni e Felipe Anderson (Lazio) ou os 110 de Kvaratskhelia e Lozano (SSC Nápoles). Em Portugal, na última temporada, Edwards e Trincão (Sporting) somaram 118, Pepê e Otávio (FC Porto) chegaram aos 116, Neres e Rafa (Benfica) aos 108, Iuri Medeiros e Bruma (SC Braga) ficaram nos 80. E a questão aqui é a de se saber se a coisa pode funcionar. Muitos lembrarão as dúvidas de Scolari acerca, por exemplo, da capacidade de fazer coexistir Ronaldo e Quaresma numa equipa. Ou, mesmo sendo Ronaldo um jogador diferente do que já foi (tenta hoje três vezes menos o drible do que há uns cinco anos), conhecerão as dúvidas que Fernando Santos teve e que Roberto Martínez ainda mantém em colocá-lo em campo ao mesmo tempo que Leão, porque são dois jogadores essencialmente individuais. Esta é uma noção empírica, a de que não será fácil fazer uma equipa com dois jogadores que têm sempre mais predisposição para carregar no adversário, para o encarar no um para um, do que para encontrar companheiros mais bem posicionados. É que o drible encerra em si uma maior possibilidade de insucesso do que o passe. Messi, que chegou a andar nos 72 por cento de sucesso no drible ao longo de toda uma época, em 2022/23, no Paris Saint-Germain, conseguiu 102 em 184 tentativas feitas na Ligue 1 (55 por cento de abordagens bem-sucedidas). Com Mbappé (74 em 201) fez a segunda dupla mais dribladora do Mundo (176 dribles). A melhor? Vini Júnior (112 em 306) e Rodrygo (81 em 169) somaram 193. Sim, são mais de 280 tentativas frustradas numa época, algumas das quais certamente podiam ter tido melhor sequência tivessem eles preferido o passe. Mas não deixa de ser um espetáculo.
Os detalhes que faltam. O Vitória SC trouxe um bom resultado da Eslovénia, onde venceu por 4-3 o NK Celje na estreia nas pré-eliminatórias da Liga Conferência, abrindo boas perspetivas de continuidade em prova. Contra uma equipa fiel ao 4x3x3 que o espanhol Albert Riera usou na conquista do título esloveno, ainda no Olimpija Ljubljana, os minhotos deram continuidade aos processos da época anterior, mesmo mudando do 3x4x3 para o 3x5x2, e basta olhar para a dimensão do resultado para se perceber que estão melhor ofensiva do que defensivamente. Marcar quatro golos fora é sempre bom sinal, mesmo quando dois deles surgem em lances de bola parada – houve ainda uma bela combinação entre Jota e André Silva e a memória das subidas de Maga no corredor direito na construção dos outros dois. Para já, é defensivamente que Moreno tem mais a trabalhar. Não é normal uma equipa sofrer um golo aos 18 segundos de jogo e outro a 53 segundos do fim do período de compensação – é questão de concentração competitiva. A somar a isso tudo, o primeiro golo nasce da atração do central esquerdo (Villanueva) ao ponta-de-lança sem que a compensação apareça e o segundo da falta de rotinas da tripla de médios contra um meio-campo a três. Há ali muitos detalhes a acertar – mas é por isso que há pré-temporadas.
Xavi e a intensidade. As pré-temporadas, lá está, servem para mais do que testar jogadores no plano individual. Não são para perceber se deve jogar o Manelinho ou o Fernandinho na lateral-direita. Servem sobretudo para dar às equipas a noção daquilo que os treinadores vão querer que elas façam em competição. Se um treinador quer uma equipa com muita gente na frente quando está em posse e isso depois obriga a uma forte reação à perda da bola, como mandam as mais recentes tendências do futebol moderno, não vai querer ver uma equipa mole nos jogos de preparação. É por isso que soou a ridículo o discurso de Xavi Hernández depois da derrota do FC Barcelona contra o Arsenal – grande golo de Fábio Vieira, por sinal – por 5-3, em jogo de pré-época nos Estados Unidos. “A intensidade que eles colocaram não é normal num particular. Mas entendo: todos querem ganhar”, disse o técnico dos catalães. Só que não foi isso que estava em causa. O propósito do Arsenal não era ganhar nem perder. Era testar a equipa em condições de competição. Se fosse para brincar jogavam no jardim lá de casa com os filhotes.
Obrigado, David Silva. David Silva anunciou a retirada do futebol, aos 37 anos, na sequência de uma rotura de ligamentos que o forçaria a um longo e penoso período de recuperação se quisesse voltar a jogar. Quem se vai é um dos grandes, não só pelo que fez nos dez anos que passou no Manchester City como pelo que ainda deu à Real Sociedad na ponta final da sua carreira, tornando-se peça instrumental, por exemplo, no quarto lugar da época passada, com direito a vaga na Liga dos Campeões. Um dos últimos jogos de David Silva pelos txuriurdines foi a vitória contra o Real Madrid, em Maio, na qual encheu o campo, fez uma assistência e, no final, levou o treinador, Imanol Alguacil, a uma tirada emblemática daquilo que significa o canhoto para os adeptos bascos. “Quanto lhes dás?”, perguntaram os jornalistas no final. “A David Silva só lhe dou um obrigado”. David Silva fez mais dois jogos. Marcou no empate com o Girona e despediu-se, sem o saber, na receção ao Almería. Vai-se agora e o mínimo que se pode fazer é imitar Alguacil e dar-lhe “las gracias” pelo que fez no futebol.