O recuo de Anselmi
Entre o idealismo e o pragmatismo, Martín Anselmi limitou a filosofia às dificuldades que a realidade lhe impõe. O recuo não tem de lhe travar a ambição mas, para já, diminui as capacidades da equipa.

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O FC Porto está vivo na Liga Europa, até acabou o empate (1-1) de ontem, com a AS Roma, por cima, aproveitando a inferioridade numérica dos italianos e a forma como baixaram linhas e deixaram de lhe expor uma das maiores debilidades, mas a cada semana que passa parece mais longe daquilo que foi prometido ou pelo menos sugerido nos discursos de André Villas-Boas e Martín Anselmi quando o primeiro apresentou o segundo como empolgante substituto de Vítor Bruno. Pode ser uma questão meramente conjuntural, de adaptação às limitações de um plantel claramente descapitalizado (o que já referi aqui), mas não é tranquilizador ver o que escolheu fazer o treinador apresentado como baluarte da modernidade e da ambição quando foi confrontado com a realidade: deu ordem aos seus centrais para que metessem o critério de construção na gaveta e para que começassem a bombear bolas sem sentido na frente. A concessão é compreensível? É. Mas ao mesmo tempo é um gigantesco passo atrás na edificação do tal FC Porto conquistador que foi prometido.
Não há setor desta equipa tão desadequado às exigências do futebol de Anselmi como o trio de trás. Seja com Djaló, Nehuén Pérez e Otávio ou com a inserção de Zé Pedro na equação, os centrais do FC Porto não estão capacitados para presidir à primeira fase de construção. E não deixa de ser relevante que a única vitória do argentino – também, é verdade, contra o Maccabi Tel-Aviv, a equipa mais fraca que enfrentou – tenha acontecido no jogo em que ele para ali fez baixar Eustáquio, colocando-o como central do meio. As debilidades dos centrais portistas com a bola e ante a necessidade de se afastarem uns dos outros, para fazer o chamado “campo grande” que é inseparável da fase inicial de construção ofensiva, foram escandalosamente expostas no jogo com o Rio Ave, em que os dois golos sofridos nasceram de erros de Nehuén Pérez, primeiro, e Otávio, depois. E se isso certamente ajudou a que tanto um como o outro vissem cair a pique a confiança para se meterem nessas coisas da construção, a resposta dada pelo treinador não só não reforçou essa confiança como acaba a prejudicar a equipa, que fica mais aleatória no ataque.
O que se viu ontem, contra a AS Roma, foi um FC Porto absolutamente incapaz de construir por dentro, em primeiro lugar porque a atuação dos centrais passava sempre por atrair a pressão e, depois, bater longo na frente, à espera da capacidade para ganhar uma segunda bola. Entre os três centrais e o guarda-redes, o FC Porto somou ontem um total de 37 passes longos, contra 23 feitos contra o Sporting ou no jogo de Vila do Conde e 24 em Belgrado contra o Maccabi. A equipa respondeu na garra – ganhou 60 por cento dos 114 duelos do jogo com os italianos – mas nem assim conseguiu impor o que quer que fosse em termos ofensivos até ao momento em que a AS Roma ficou reduzida a dez homens, por expulsão de Cristante, aos 72’. Oito dos 12 remates do FC Porto surgiram nos últimos 12 minutos de jogo e é fácil de entender porquê. Com um homem a menos, Claudio Ranieri fez aquilo que, por falência física, também o Sporting tinha feito na segunda parte do Dragão na sexta-feira: baixou o bloco para perto da área e poupou aos portistas o embaraço da primeira fase de construção. Ainda assim, mesmo nesse período, o que a equipa de Anselmi mais fez foi seguir por fora e cruzar. Ao todo, o FC Porto fez ontem 23 cruzamentos. São menos quatro do que somara com o Sporting, em partida que terminou com 27. Mas contra o Rio Ave só tinha feito 15 e contra o Maccabi 13. A média portista desta época em jogos da Liga Europa é de 13,2 e na Liga Portuguesa de 13,8, o que ajuda a entender a mudança do seu futebol nas últimas duas partidas.
Ficaremos sempre sem saber por que razão as coisas mudaram como mudaram. Se Anselmi iria continuar com Eustáquio atrás caso tivesse mantido Nico González para lá do fecho do mercado de Janeiro ou se o devolveu ao meio-campo por não ter mais quem pudesse jogar ali. Se a equipa teria mais qualidade de construção nesse cenário e se as opções assumidas desde então são fruto dessa limitação ou se, pelo contrário, resultam de uma convicção. Mas ao mesmo tempo que optou por arrumar a primeira fase de construção na gaveta dos projetos para o médio e longo prazo, o treinador argentino assumiu ainda mais duas escolhas que encaminharam a equipa para o lugar onde ela se encontra neste momento. A primeira foi o ganho de protagonismo de Gonçalo Borges, jogador que é tão indomável no um-para-um como depois é inconsistente nas tomadas de decisão. Foi ele que fez nove dos 23 cruzamentos portistas ontem, só descobrindo um companheiro em dois. Gonçalo Borges é um jogador que me encanta pela fantasia, mas que precisa urgentemente de carradas de noção quando se trata de entender o que é o jogo coletivo. E a outra foi o recuo de Rodrigo Mora para terceiro médio, afastando-o de Samu e da química que os dois começavam a construir, que até valeu uma reportagem especial dos meios da UEFA. Na resposta à tal saída mais longa, o FC Porto usou contra o Sporting e a AS Roma um meio-campo a três, em triângulo, com Varela atrás de Eustáquio e Mora, optando por deixar na frente Pepê (contra os leões) ou Borges (com os italianos). Em resultado disso, Samu e Mora deixaram de ligar. Contra o Sporting, o ponta-de-lança espanhol só recebeu 12 passes (e zero de Mora). Ontem recebeu 14 (dois de Mora). A mais prometedora sociedade desta equipa deixou de funcionar.
Quando chega a uma nova realidade, a um treinador pede-se que faça uma escolha. Ou aplica as suas ideias e aceita que, até acertar, vai ter de amargar durante algum tempo, ou se adapta ao que tem e arruma a filosofia lá onde o sol não brilha. As duas opções são válidas e têm consequências. Teria – ou terá, que este não é um tema fechado... – Anselmi capacidade para chegar de imagem imaculada à pré-época de 2025/26 se insistisse nas suas ideias e elas levassem à exposição crescente de um grupo de jogadores não preparado para as aplicar? E terá ele capacidade para as recuperar quando e se o FC Porto lhe der os jogadores de que ele precisa? Ou abdicará ele dessas ideias em nome das quais foi contratado, tratando antes de aperfeiçoar pelo treino este futebol de alívio na frente e luta pelas segundas bolas, de forma a que ele até venha a resultar, mesmo quando os adversários optem por jogar no campo todo? A resposta será dada nos próximos jogos. Sendo que, inevitavelmente, começa a ser altura de o FC Porto ganhar, coisa que ultimamente não fez, seja com as ideias antigas, as novas ou as adaptadas.
Um bom treinador tem de saber quando deve aplicar as suas ideias e quando mais vale estar quieto. No caso do Sporting, temos um plantel que jogava de olhos fechados, destruído primeiro por um treinador que ainda pensa que jogou no mesmo sistema e outro que decidiu mudar tudo, em vez . Já Anselmi chega a um Porto que estava mal e, obviamente, aplicou as suas ideias. O recuo será porque viu que com estes defesas não o vai conseguir. Veremos se o Porto terá a capacidade de ir ao mercado no Verão fazer uma revolução.
Curioso que ultimamente, em tudo o que leio e ouço, o cruzamento, outrora mais uma forma de chegar ao golo, tornou-se um palavrão.