O poder dos ilusionistas
Neres ou Gonçalo Borges farão sempre sentido em equipas dominadoras, porque são mestres na arte do ilusionismo: convencem-nos de que a bola vai estar ali, quando nunca pensaram tirá-la daqui.
O Benfica e o FC Porto sofreram bastante para ganhar a um Estrela da Amadora organizado e ultra-defensivo e a um Farense até interessante na maneira de fugir às zonas de pressão mas também capaz de acumular gente atrás. Nestas situações, já se sabe, o melhor a fazer é ir para cima. E, por muito que o futebol seja um jogo coletivo, se o adversário agrupa unidades em torno da baliza, se junta linhas densas à frente da área, muitas vezes há que recorrer ao génio individual, ao descaramento de assumir o um para um e o desequilíbrio que ele é capaz de gerar. O Benfica e o FC Porto ganharam porque tiveram em Neres e Gonçalo Borges os génios da lâmpada, os ilusionistas capazes de fazer os adversários diretos achar que a bola estava ali quando na verdade ela estava aqui. O brasileiro que Schmidt já sacrificava na época passada, de forma a dar mais temporização à segunda linha atacante – e que mais sacrificará ainda este ano com a chegada de Di María e a manutenção de Rafa – surgiu à esquerda em vez de o fazer à direita e, em vez de sair do drible em direção ao meio e assumir a finalização de canhota, foi para a linha em cima de Jean Felipe e deu o golo desbloqueador a Tengstedt. Depois, já no seu habitat mais natural, ainda propiciou o 2-0 a Rafa. Já o miúdo que dá os primeiros passos na equipa portista foi tão desequilibrador à esquerda, para onde entrou, como depois, à direita, para onde se mudou quando se assumiu como lateral para encaixar Namaso na frente. Sempre com recurso à mesma arte da finta. Foi sem sequer tocar na bola, só passando a perna direita por cima dela, que Gonçalo convenceu os dois homens que tinha pela frente de uma coisa que nunca esteve para acontecer. Talocha ficou a achar que ele ia sair pelo lado de Matheus, este julgou que ele ia sair pelo lado de Talocha, mas quando ele tocou na bola foi para a cruzar para a entrada de Marcano no espaço que lá estava, do outro lado. A bola entrou e Talocha e Matheus olharam um para o outro, como que a dizer: “Era tua, mano!” Não era. Porque, lá está, por mais que nos convençam do contrário, aquela bola nunca deixou de ser dele, de Gonçalo Borges. É isso que ilusionistas como ele ou Neres trazem ao jogo. E é por isso que continuarão sempre a fazer sentido em qualquer equipa.
O VAR de Rio Maior. O Casa Pia-Sporting ficou marcado por um erro do VAR, na validação do primeiro golo de Paulinho. O pé do avançado do Sporting estava nove centímetros em fora-de-jogo, não assinalado devido a uma incorreção na colocação das linhas, postas no ombro, que estava 19 centímetros atrás do ponto mais atrasado do corpo do penúltimo defensor do Casa Pia. O erro, que o Conselho de Arbitragem assumiu no final da partida, influenciou o jogo que vimos depois disso, porque aconteceu logo aos 3’. Não só levou o Casa Pia a ser mais pressionante na busca do empate como terá conduzido o Sporting a uma exibição mais passiva, uma vez que já estava em vantagem. Mas já me parece um passo bem maior do que a perna sustentar que esse erro, com 87 minutos por jogar, decidiu o resultado. Ou que houve desonestidade de quem estava no VAR. Se tivesse havido desonestidade, teria sido possível ir buscar outro frame – e para perceber que seria fácil encontrar um basta ter conta no Twitter – em que Paulinho estivesse em posição regular, em vez de deixar a suspeição crescer com os minutos de jogo que decorreram sem que as linhas fossem tornadas públicas e assumir no final que houvera erro humano na aplicação da tecnologia. Os árbitros que estavam no VAR já foram afastados, mas foram-no por um caso de incompetência e não de desonestidade. E, arrumada essa questão, a mim interessa-me muito mais perceber por que razão o Sporting se mostra tão precipitado na verticalização de jogo que anula quaisquer possibilidades de poder controlá-lo com bola. Isso é que alguém devia perguntar a Rúben Amorim.
A lusitana cultura. Mas isso não é conversa para Portugal. Em Portugal só se vê para um lado – o nosso. Os mesmos que andaram anos a queixar-se de um golo com a mão à terceira ronda de um campeonato depois perdido agora acham que se deve relativizar. Os mesmos que então acharam que esse foi um erro normal, até porque não havia VAR, agora rasgam as vestes em memória de uma Liga inapelavelmente ferida de ilegalidade. Tudo o que interessa, a uns e a outros, é se o Conselho de Arbitragem fez bem ou mal em pedir desculpa ou porque é que não o fez noutros erros. E a coisa, que a mim me estranha, entranha-se, torna-se uma espécie de lusitana cultura de jogo. Basta olhar para Bruno Fernandes, que depois da segunda péssima exibição do Manchester United, desta vez punida com derrota contra o Tottenham, foi dizer que ia ficar no balneário à espera de ver se a equipa de arbitragem lá ia pedir desculpa por não ter marcado um penalti a favor das suas cores, como outros árbitros tinham feito na semana passada, por terem ignorado um penalti contra o United e a favor dos Wolves. Espero que ainda lá esteja, à espera, aborrecido, que assim ao menos percebe que o caminho não é, não pode ser esse.
Apesar de você. Custa-me muito a entender que uma equipa possa ganhar apesar de um dos seus integrantes, como agora se quer fazer crer a propósito do selecionador espanhol Jorge Vilda. O filho do antigo preparador físico do Benfica entrou na Federação Espanhola a reboque do pai e foi acusado de ser incompetente e abusivo no controlo da vida das suas jogadoras, a ponto de 15 delas terem tentado afastá-lo do comando, manifestando-se indisponíveis para continuar a representar a “roja”. A Federação segurou Vilda, três dessas jogadoras voltaram e a Espanha foi ontem uma justíssima campeã do Mundo, derrotando a Inglaterra na final de Sydney, mas o clima nunca ficou minimamente sequer amigável, como se percebe por vários detalhes, como o da marginalização do selecionador em qualquer foto de grupo, até durante os festejos. Entendo que para a agenda do empoderamento feminino fosse mais interessante o Mundial ter sido ganho por uma equipa liderada por uma mulher, como era a Inglaterra de Sarina Wiegman. E francamente estou-me nas tintas: o desporto tem esta mania de premiar os melhores, independentemente do género. Mas o inaceitável – porque não foi consentido nem desejado – beijo de Jose Luis Rubiales, o presidente da Federação, na boca de Jenifer Hermoso, a dez de Espanha, durante os festejos, ajuda a explicar a raiz do problema. Que existe e nos grita a todos, por mais que queiramos olhar para o lado e ignorar o elefante na sala. Vilda, aqui, apanhou por tabela. O que está em causa não é a sua competência ou falta dela, não é o controlo que ele possa ter querido ter sobre a vida das suas jogadoras – como qualquer treinador de elite terá sobre a vida dos homens que lidera. O problema aqui é o sentimento de posse que alguns machos latinos ainda nutrem pelas mulheres. Rubiales não só não pediu desculpa como ainda gozou com a situação, anunciando que vai casar-se com Jeni em Ibiza. E isto, sim, parece-me suficiente para ensombrar os festejos de um título justíssimo. Mas, como cantava Chico, “apesar de você, amanhã há-de ser outro dia”.
Aos poucos essa cultura do olhar só para o nosso umbigo irá desaparecer ...... só pq é a única forma do nosso futebol subsistir
Sobre a questão da seleção feminina espanhola, colocam-se duas questões:
-Se 15 membros (habituais titulares ou de rotação) da seleção espanhola masculina decidissem sair da seleção ao mesmo tempo e reportando as mesmas razões, seria o tratamento da federação o mesmo?
Tenho as minhas dúvidas, no mínimo seria instaurada uma grande investigação/processo ao selecionador/equipa técnica. Mesmo que no final ele ficasse no cargo, garantidamente que teria sido tudo excrutinado ao máximo, tanto por essas investigações internas como por comunicação social e outros meios.
-Para 15 atletas profissionais dos maiores clubes à escala mundial terem pedido a rescisão do treinador (recebendo ainda o apoio de muitas outras), será que foi só uma questão de "métodos de treino desatualizados"? Até que ponto vai esse "controlo excessivo" que é reportado?
Porque será que as jogadoras (que até há pouco tempo tinham condições de treino/trabalho/salariais muito inferiores aos jogadores) de repente decidiram que estes métodos de trabalho não são "suficientes"?
Acho que neste caso há muita questão que infelizmente não vai ficar respondida e muitos detalhes que não ficarão a ser conhecidos (pelo menos num futuro próximo).