O paradigma da gestão
O futebol moderno é feito de muitas coisas e uma delas, incontornável, é a gestão. A gestão dos jogadores, dos minutos, das vantagens, das expectativas, dos medos e das ambições. Aí se decide a Liga.

Palavras: 1138. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Há na história dos últimos cinco meses de Pedro Gonçalves uma espécie de regresso à infância, uma irresponsabilidade misturada com alegria de viver que nos devia maravilhar ao mesmo tempo que nos irrita. O jogador assumiu erros próprios na prolongada ausência que o tirou das opções dos treinadores que o Sporting teve durante meio campeonato, primeiro por ter querido estar na despedida de Ruben Amorim, em Braga, forçando a utilização num jogo em que os médicos já tinham avisado que ele corria elevado risco de se lesionar, depois por alegadamente ter provocado uma recaída, causada pela vontade infantil de rematar uma bola num treino, quando a tal ainda não estava autorizado. O que a história nos lembra é que há riscos nessa vontade muito ‘rock and roll’ de viver no limite e querer contrariar o que cada vez mais é o paradigma dominante do futebol moderno – um paradigma de gestão controlada, que os líderes de cada equipa têm de saber incorporar no DNA dos clubes, de forma a evitar a irresponsabilidade e, ao tempo, a impedir que o controlo se transforme em complacência. Da avaliação do sucesso de Rui Borges e Bruno Lage nesta tarefa sairá a definição do campeão de 2024/25.
Antes da jornada anterior, a que teve um FC Porto-Benfica e um Sporting-SC Braga, debati com o José Nunes e o Jorge Andrade, no 360 da RTP, as dificuldades acarretadas pelo calendário que sobrava a cada uma das equipas candidatas ao título. A conversa até gerou ali uma espécie de mal-entendido, porque não terei conseguido explicar bem a minha ideia. Nunca me passou pela cabeça que fosse mais fácil para o Benfica visitar o FC Porto do que receber o FC Arouca – como de resto acabou por ser –, mas era para mim evidente que há na equipa do Benfica, no DNA do Benfica, dois fatores a ter em conta. Um deles é a forma como, respaldados num passado (não só longínquo mas também recente) de conquistas, os seus jogadores se agigantam perante os grandes desafios. Este é o Benfica que só não ganha ao FC Barcelona por um triz, o Benfica que fez nove dos seus 13 pontos na fase regular da Liga dos Campeões fora de casa e que depois, na Luz, só bateu o Atlético Madrid, e logo por 4-0, perdendo com clareza com o Feyenoord e salvando um ponto com alguma sorte contra o Bolonha FC. E aí está o segundo fator a levar em consideração: o mesmo passado faz com que, na aplicação do paradigma de gestão àquilo que é “ser Benfica”, a equipa se torne complacente em jogos que aparentemente são mais fáceis. É o Benfica que empata com o FC Arouca e que por pouco não deixa também pontos contra adversários menos apetrechados ainda, como o Farense, o Rio Ave, o Estrela da Amadora ou o Moreirense, jogos que ganhou por 3-2 depois de vacilar ao segundo golo de vantagem.
É fácil vir agora dizer que não há que gerir, que o segredo é acelerar em permanência, mas o futebol de hoje não deixa que isso aconteça. Há demasiados jogos e são por vezes os próprios departamentos médicos a aconselhar a redução da intensidade, seja nos jogos ou nos treinos – o que depois se reflete nos jogos, porque todas as equipas jogam como treinam. Como essa mensagem chega aos jogadores e como eles a interpretam já varia de caso para caso. Se no Benfica o que se tem repetido é alguma complacência sempre que os adversários são mais débeis ou quando se chega ao segundo golo de avanço, no Sporting a ideia mais dominante é outra. Há maior sede de conquista, porque o clube não tem ganho tanto assim no futebol – tem tantos campeonatos nos meus 55 anos de vida como o Benfica na última década –, e isso depois reflete-se em entradas de leão nos jogos. Uma regra a que a visita ao Santa Clara, no sábado, foi exceção – e quem sabe se essa não é a forma do responsável fintar o problema. Porque depois, ao mesmo tempo que se vê maior incapacidade performativa vinda de uma resignação difícil de entender nos jogos contra adversários mais fortes, encontra-se mais um medo de perder que não se vê na Luz e que, regra geral, se reflete na recusa da posse e da iniciativa após a obtenção do primeiro golo. O Sporting de Rui Borges marcou primeiro em todos os jogos de campeonato – a exceção é a receção ao FC Arouca, mas até o golo com que os visitantes se puseram em vantagem foi marcado na própria baliza, a meias entre Saint Juste e Rui Silva –, mas cedeu cinco empates, quatro deles em partidas nas quais estava na frente à entrada para os últimos dez minutos.
Mas, perguntar-me-ão: porque é que nuns é medo e nos outros complacência? É possível que a escolha de palavras tenha mais que ver com a minha própria matriz mental de avaliação ao que é o DNA dos dois clubes, mas o efeito é o mesmo. Ainda assim, o que temos visto com as duas equipas em vantagem é um Sporting a deixar de jogar para se concentrar na defesa dos pontos e um Benfica a continuar a procurar jogar mas a afrouxar o rigor com que se comporta nos momentos sem bola. É tão inexplicável para mim que, com os jogos já tão perto do fim e ambas as equipas a defenderem a vantagem mínima, o Sporting tenha permitido ao SC Braga a sucessão de cruzamentos da direita que permitiu, até que um desse a Patrão a oportunidade para cabecear para o golo do empate, como que ninguém do Benfica (e seria Schjelderup, que, pelo contrário, abrandou) tenha acompanhado Weverson, permitindo que o defesa-esquerdo do FC Arouca aparecesse à vontade para finalizar uma jogada em que Nandim ganhou espaço na profundidade e Tomás Araújo, o lateral-direito, tinha ido dentro para fechar Puche. Com as duas equipas a incarnarem o espírito ‘rock and roll’, a jogarem sempre no limite, nada disto aconteceria? É possível. Mas também teríamos mais casos como o de Pedro Gonçalves. O segredo não é querer sempre mais, não é voltar à infância, aos jogos do muda aos cinco e acaba aos dez, que tantas vezes iam aos 10-9, porque o que queríamos era viver no limite. O segredo é viver bem com aquilo que se tem e conseguir meter a gestão no DNA de cada clube, de cada equipa. Quem conseguir fazê-lo melhor será campeão no mês que vem.
Pedro Gonçalves esta época já não fará a diferença !! Foi demasiado tempo inactivo..!
Concordo em absoluto com a análise feita: complacência de quem tem a vertigem e miragem do campeonato ganho (SLB); medo de arriscar do SCP (diria: pavor, terror, pânico de errar).