Os desafios de Reinaldo
Fica no ar alguma ideia de continuidade de Proença para Reinaldo Teixeira, o novo presidente da Liga. Mas o sucesso do novo regime passará em grande medida pela capacidade de fazer algumas roturas.
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Reinaldo Teixeira foi hoje eleito presidente da Liga Portugal com uma maioria tão expressiva (42 votos a dez) que permite achar que ele poderá mesmo dar corpo à ideia de que quer ser “o presidente de todos os clubes” e que essa não é apenas conversa de circunstância em que tantas vezes se especializam os dirigentes de sucesso num futebol português em que cada vez é mais importante parecer do que ser e em que ambas as coisas estão bem acima do verbo que devia interessar mais, que é o fazer. O alcance da candidatura do algarvio, porém, bem como a sua transversalidade, a reunir em seu redor desde alguns candidatos ao título a quem passa as semanas a tentar fugir à despromoção, não permite ao novo líder da Liga uma saída fácil para um biénio que será dificílimo e o mais exigente das últimas décadas. Do que se fizer nos próximos dois anos vai depender muito daquilo que vai ser o futebol nacional no futuro a médio e longo prazo.
Não consigo olhar para trás e dar nota negativa à direção de Pedro Proença. O ex-árbitro, que agora imitou o seu antecessor, Fernando Gomes, passando da Liga Portugal para a Federação Portuguesa de Futebol, esteve sempre do lado certo de algumas batalhas importantes, como a da centralização dos direitos audiovisuais, alinhando Portugal com a modernidade, e soube manter a Liga na via da prosperidade financeira, alinhavando parcerias comerciais que fazem parte do presente do futebol. Mas também não consigo dar-lhe nota amplamente positiva, porque me parece que ele terá de certa forma cedido e até instigado a marquetização extrema que, no limite, o levou a entender que o parecer era mais importante do que o ser. Aborrece-me a insistência da Liga em vender-nos contos de fadas que basta andar pelos estádios para entender que não têm qualquer correspondência com uma realidade de clubes sem casa, de outros com casas a cair aos bocados e de outros ainda com casas que poucos adeptos se dão ao trabalho de visitar, tão incómodas são as condições para o encontro que os clubes preferem fazer com a intermediação do operador televisivo – que assim ao menos não dá tanta despesa ou trabalho.
Admito que esta propaganda dos amanhãs que cantam tenha até certo ponto sido necessária, mas começa a ser altura de se dar o passo em frente, o passo que torne o futebol mais produto de estádio do que de estúdio. À frente da nova equipa dirigente da Liga Portugal coloca-se uma série de desafios, que começam na fundamental definição do modelo de distribuição das verbas resultantes dos acordos saídos da negociação centralizada dos direitos audiovisuais mas estão longe de se esgotar aí. A definição desta matriz de distribuição, que poderá puxar mais pela implantação social (audiências) ou pelo mérito desportivo (resultados), mas terá de ser necessariamente mais justa e equilibrada do que é atualmente, vai ser o primeiro sarilho da nova direção, pois terá de estar terminada ao longo da próxima época desportiva. E uma das questões a resolver, numa altura em que toda a Europa está a ver os valores retrair, é a de dizer com clareza aos clubes que o bolo total não vai ser tão grande como as meias-verdades e as omissões do regime anterior levavam a crer. Proença nunca desmentiu e até definiu como objetivo a avaliação que apontava para a possibilidade de a Liga vir a conseguir 300 milhões de euros por ano com o negócio que entrará em vigor em 2028/29, pelo que uma das tarefas inaugurais da nova Liga será certamente a de começar a preparar os clubes para a hipótese de isso não ser possível.
Depois, é evidente que se há menos dinheiro e se reconhece – há quem não o reconheça, mas isso já é outra conversa... – que a sua divisão tem de ser mais equilibrada, será um sarilho encontrar uma grelha de distribuição que siga as melhores práticas do futebol internacional e satisfaça todos os apoiantes de uma candidatura tão abrangente e transversal. Terá havido conversas preliminares com os signatários da candidatura a este propósito? Ou, mais uma vez, os clubes deixaram-se engajar num programa que não se deram sequer ao trabalho de estudar e analisar, a pensar sobretudo nos frutos a retirar de estarem do lado vencedor da corrida? O desconhecimento é, tradicionalmente, a melhor forma de garantir algum espaço de recuo, uma margem de manobra que permite que tudo mude mas tudo acabe por ficar na mesma. E era fundamental que a Liga encarasse o futuro próximo com algumas perspetivas diferentes, operando roturas sem as quais as coisas não melhorarão. A começar em questões que unirão todo o futebol – como a do IVA aplicado aos bilhetes para os jogos, por exemplo. A continuar noutras que já prometem ser mais divisivas, como o tratamento dado aos adeptos visitantes, muitas vezes engaiolados e proibidos de demonstrarem sentimentos de pertença através de bandeiras, camisolas ou outros adereços, tantas outras impedidos até de entrar em estádios por anfitriões que, não tendo expressão social suficiente, preferem ter as bancadas vazias a enchê-las com apoiantes do adversário que lhe esbateriam as vantagens do fator-casa. Que legitimidade têm esses clubes para pedir depois mais dinheiro da TV do que justificam pela sua implantação junto do público se reduzem o acesso desse mesmo público à sua dimensão mais reduzida?
Se é urgente acabar de vez com a ‘chico-espertice’ que afasta gente dos estádios e se todos concordarão que é imperioso reduzir os custos associados à organização dos jogos, a verdade é que antes até da definição da tal grelha de distribuição das verbas saídas da negociação centralizada dos direitos audiovisuais será fundamental definir a relação do futebol nacional com o seu público. Até onde é legítimo ceder aos operadores? Dependerá isso do quanto eles estiverem disponíveis para pagar? Supondo que eles pagam os tais 300 milhões por ano, até que ponto é legítimo alienar o público em nome dessa verba, quando se sabe que um jogo sem público é um produto televisivo menos interessante? Onde queremos os espectadores? Queremo-los no estádio – para o que seria importante ter mais jogos à tarde, nos fins-de-semana, eventualmente até em simultâneo, bem como colocar um ponto final em encontros noturnos entre equipas que estejam separadas por, digamos, mais de 100 quilómetros, que dificultam a deslocação dos adeptos? Ou queremo-los no sofá, onde não criam problemas de segurança, não nos aumentam os custos – o que aconselha o crescimento do total de jogos à noite e o espalhar das rondas por mais dias da semana, ocupando as noites deixadas vagas pelos outros campeonatos europeus?
Esta é uma questão ideológica e programática. Por mim, futebol é, primeiro, no estádio, e só depois na TV. Nenhum dos dois universos sobrevive sem o outro, mas só um deles – se for excessivamente privilegiado – pode matar o outro. Mas quantos clubes, sejam apoiantes da candidatura vencedora ou da derrotada, pensaram no tema antes de votarem? E o que acha disto o novo presidente da Liga? Mais do que vê-lo apregoar a concórdia, era sobre isto que queria ouvi-lo neste momento.