O laçarote de Schmidt
As equipas de Schmidt jogam sempre igual – exceto se não jogam. Ao abdicar de um ponta-de-lança, o alemão pôs um laçarote no embrulho que ajuda a separar o contexto coletivo do brilho das estrelas.
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É sempre extraordinariamente difícil de traçar a linha que separa uma equipa que constrói os seus resultados sobretudo através dos comportamentos coletivos de outra que os vai obtendo mais graças às suas individualidades, mas o Benfica de ontem, em Guimarães, deixou-nos um excelente contributo, porque dificilmente seria possível criar condições mais adversas às suas estrelas do que as que elas tiveram de encarar de início. A meteorologia deu uma ajuda, que não é todos os dias que se apanha um temporal como aquele ou um relvado com tanta água à superfície como a que tinha o do D. Afonso Henriques. O Vitória SC, uma equipa de pelo na venta, que mete tudo em cada lance e está cheia de gente que não só olha para a frente como corre mesmo para lá, também não é fator a desprezar. E Roger Schmidt, tão minimal-repetitivo na obsessão pelos comportamentos do 4x2x3x1 que usa desde os tempos de Leverkusen, pôs o laçarote num embrulho que pode ajudar a fazer a tal distinção, mudando-os e criando ali alguma entropia e uma necessidade de adaptação complicada de gerir num contexto já de si tão difícil. Pela terceira vez em 90 jogos oficiais ao comando as águias, Schmidt abdicou da utilização de um ponta-de-lança no onze. Na época passada, em 55 partidas, essa missão pertencera 46 vezes a Gonçalo Ramos, cinco a Musa, três a Gonçalo Guedes e uma a Rodrigo Pinho. Guedes também não é um ponta-de-lança clássico, mas tem pelo menos o físico que lhe permite servir de referência e funcionar como plataforma em cima da qual a equipa pode depois crescer no terreno. Nesta temporada, além da variação entre Arthur Cabral, Musa e Tengstedt que marcou os primeiros meses, o de ontem foi o segundo jogo que o alemão começou com Rafa ali, como homem mais adiantado. Tinha acontecido na Supertaça, contra o FC Porto, com Aursnes nas suas costas, e o treinador corrigiu com a entrada de Musa ao intervalo, ao qual chegou com três remates contra dez dos adversários e alguma fortuna na forma como ainda estava empatado. Acabou por ganhar por 2-0, pelo que a questão tática passou para segundo plano. O cenário repetiu-se em Milão, contra o Inter, dessa vez com Neres a nove e Rafa na sua posição natural, atrás dele, mas os problemas repetiram-se. Em Itália, Schmidt chamou Musa aos 69’, depois do golo com que os adversários se adiantaram, numa altura em que bem podia estar já mais atrás no marcador, pois tinha três remates face a 16 e um índice de golos esperados de 0,2 contra 2,4. Aí já não foi a tempo de emendar o resultado, pelo que o tema suscitou alguma controvérsia. E a fórmula voltou a subir à relva ontem, com duas agravantes. É que Roger Schmidt não se limitou a deitar ao lixo a sua própria sagacidade, a forma como dera um novo impulso à carreira de Rafa no momento em que vira que ele beneficia com a presença de uma referência frontal que lhe permita encarar o jogo de frente para a área contrária, de maneira a meter as suas acelerações pelo corredor central. Fez mais, porque a escolha do veloz atacante para jogar ali implicava o sacrifício de Arthur Cabral, metendo um travão no excelente momento que o brasileiro vivia e que o vira marcar golos nos últimos três jogos do Benfica. E porque o emparelhamento de Rafa e Di María, dois jogadores tão leves, no ataque a um relvado como o de ontem era um convite a que o Vitória assumisse, como assumiu, o controlo do jogo. “Queríamos aproveitar a profundidade nos momentos exatos, mas o relvado tornou isso difícil”, reconheceu no final Schmidt. Mas foi uma surpresa para alguém que o relvado estivesse como estava? Schmidt precisou de 45 minutos para se aperceber de que não conseguia marcar superioridade sobre aquele Vitória, naquele relvado, com aquele onze? O pé esquerdo de Di María ainda inventou dois golos, um marcado por uma chegada de Rafa, outro num cabeceamento de Cabral, mas a noite de ontem foi um exemplo claro de um jogo em que foram as individualidades e não o coletivo a salvar um ponto ao Benfica.
Trincão e a estratégia. Não é que a estratégia seja tudo num jogo, que não é. Artur Jorge, por exemplo, sofreu na pele aquilo que não era difícil de prever se voltasse a repetir o foco que lhe valeu a vitória sobre o Sporting (1-0) na meia-final da Taça da Liga. “Será provavelmente impossível a um candidato ao que quer que seja olhar para o jogo de forma regular como o SC Braga o fez ontem”, escrevi aqui, no Último Passe, na manhã que se seguiu a essa vitória. “O SC Braga mais centrado na anulação dos adversários até pode manter a ideia para a final de sábado, sobretudo se pela frente lhe aparecer o Benfica [e afinal não apareceu], mas não é de todo aconselhável que prolongue essa forma de pensar pela época a fora. É que as bolas nem sempre vão bater nos ferros”, concluí. Pois ontem não bateram. Artur Jorge repetiu as mesmas ideias, com cobertura dupla dos dois centrais a Gyökeres e referências individuais de marcação a todos os adversários que podia alcançar. Gómez e Borja encaixavam em Santos e Catamo, Vítor Carvalho e Moutinho em Trincão e Pedro Gonçalves, Zalazar seguia Morita, Horta condicionava Hjulmand e depois sobravam-lhe dois atacantes – Djaló e Ruiz – para três centrais. O primeiro, que jogou sobre a direita, caiu em cima de Inácio, enquanto que o ponta-de-lança devia no momento defensivo tapar Quaresma, convidando o Sporting a sair através do central do meio, o menos dotado para a construção, que é Coates. O que é que acabou por fazer a diferença? Foi Trincão. O remate do canhoto, logo aos nove minutos, foi ao canto inferior da baliza de Matheus mas não bateu no poste – entrou mesmo e deu ao Sporting um conforto diferente, permitindo, por exemplo, que Coates metesse repetidamente gelo no jogo quando o deixavam livre. “Ah está tudo tapado? Está bem, estou a ganhar e fico aqui com a bola”, pensou o uruguaio. Até que Ruiz perdia a paciência, ia ter com ele e assim se libertava o espaço para saídas de Quaresma como a que gerou o segundo golo e deixou logo o jogo muito bem encaminhado para os leões. A estratégia é importante? É, sem dúvida. Mas mais do que qualquer adaptação, o que vale realmente é a persistência numa boa ideia. Rúben Amorim está finalmente a colher frutos da insistência em Trincão, jogador mal-amado das bancadas por tanto tempo mas com uma influência igual ou até superior à do excelente Gyökeres nos últimos jogos do Sporting.
Vini e os campeões. As coisas não andam fáceis para o Real Madrid, que tem um plantel curto e dificuldades para lidar com as lesões, sobretudo atrás, mas neste fim-de-semana a equipa de Ancelotti deixou claro que vai ser campeã de Espanha e que o desafio daqui até final desta época é estar a tope nos dias de Liga dos Campeões. Os 4-0 ao Girona FC, em tarde mágica de Vini Jr. – um golo, duas assistências diretas para Bellingham e Rodrygo e invenção da jogada na qual nasceu, em recarga a um remate dele, o outro tento do inglês – acabaram de vez com o debate interno, mas há que meter ponderação na coisa. Vini Jr. pode até ser hoje a razão para o Real Madrid começar a encarar com menos ansiedade a possibilidade de vir a acolher Mbappé ou não, é um dos dois ou três melhores desequilibradores do futebol mundial, mas quem tinha pela frente naquele dia era um lateral de cabelo cor-de-rosa, Yan Couto, que até passou por Braga e não maravilhou. O nível vai subir e é aí que Vini tem de justificar o estatuto. Da mesma forma que aí se perceberá se é possível jogar sem defesas-centrais e impedir os adversários de enquadrarem um único remate na baliza.
A máquina de Alonso. Quem também acabou com as dúvidas foi o Leverkusen de Xabi Alonso, uma máquina de produzir futebol que passou incólume à ausência de Boniface e no sábado aviou um Bayern sem alma por 3-0, mantendo a invencibilidade e aumentando a vantagem no topo para cinco pontos. Recordam-se do que escrevi acima acerca do Benfica com Rafa na posição de ponta-de-lança? Pois bem, esta é a altura de rebaterem com o Leverkusen, que vai ganhando jogos sem um nove clássico também. Wirtz é o jogador todo-o-terreno que passa por lá, mas é mais um falso nove do que outra coisa, porque tanto se vê Adli a chegar do lado esquerdo como Tella a fazê-lo vindo da direita. Tudo somado ao comportamento assimétrico dos dois laterais, Stanisic e Grimaldo, faz do Leverkusen uma máquina muitobem trabalhada e prova que no futebol não há más ideias. O que há, sim, são ideias mais ou menos adequadas a certos contextos, sejam eles humanos ou externos. E neste Leverkusen tudo bate certo, razão pela qual esta é, neste momento, uma Bundesliga que o Bayern já não pode ganhar e que só os atuais líderes podem perder.