O golo do empate dos adeptos
A revogação da lei do cartão do adepto foi apenas o golo do empate na luta contra a discriminação e a intolerância. Para ganhar de virada, precisamos da colaboração dos clubes que já cantam vitória.
A revogação do cartão do adepto pela Assembleia da República foi uma boa medida e, de certa forma, uma vitória dos adeptos que gostam de futebol e o levam a sério, bem como dos clubes que não só entenderam que não era assim que se resolvia a questão como perceberam que, face à recusa do público, esta lei lhes colocava novos problemas. Já tinha escrito o que pensava da lei aqui e, entretanto, o que esta época nos deu de experiência com a sua implementação ajudou à luta de todos os que consideravam que estávamos a combater uma tempestade com um canhão. O problema da violência no desporto em geral – e no futebol, como agregador de massas, em particular – é real, a intolerância e a estupidez encontram nos estádios campo fértil para crescer e, ainda que as medidas previstas com a criação do cartão do adepto não me parecessem as mais corretas, é preciso termos todos a noção de que o que aconteceu ontem foi apenas o golo do empate. Ainda falta mais um para este jogo ser ganho, de virada.
A solução para a violência entre idiotas mascarados de adeptos de futebol não pode ser tirar os adeptos dos estádios. Não pode ser dividir as famílias, criar zonas segregacionistas para lá enfiar os adeptos que queiram ir ao futebol munidos de coisas tão simples como bandeiras que excedam as dimensões consideradas normais por algum especialista em adereços. Não pode ser obrigar todos os que pretendem ir ver a sua equipa jogar fora de casa a um processo burocrático que acaba por afastá-los dos estádios e metê-los nos centros comerciais, onde não é preciso cartão para entrar. Mesmo aqui, quantas vezes já lhe aconteceu estar a comprar alguma coisa e, solícitos, os funcionários da loja perguntarem-lhe se já tem o cartão da marca? Tem vantagens associadas, ganha pontos, pode ter descontos, acesso a promoções e só leva cinco minutos a preencher e a deixar aqui os seus dados... E o que é que respondemos nove em cada dez vezes? “Não, obrigado”.
O cartão do adepto, o cartão que nos responsabiliza face à lei e ao estado de direito, em bom rigor, já existe. Chama-se cartão de cidadão e todos nós temos um. A questão fundamental é fazê-lo funcionar. Não se trata de, como logo pediu o Chega, aumentar a vídeo-vigilância, como se estivéssemos num estado policial, em que todos somos controlados pelo Big Brother e há um polícia para defender cada “cidadão de bem” das tropelias dos gangues da bola. Essa vídeo-vigilância já existe nos estádios e, se não a temos fora dos estádios, também é verdade que para andar a armar confusão nas vias circundantes também não seria preciso ter cartão do adepto. O que é preciso é ligar os pontos. É a polícia ter a capacidade de chegar a quem é apanhado pelas câmaras de CCTV a fazer asneira e, depois, impedir essa malta de voltar aos estádios. E, lá está, para o fazer não é preciso o cartão do adepto. Bastam o cartão de cidadão e um juiz.
Revejo-me, por isso, na luta dos adeptos que frequentemente se manifestavam contra a lei. Esta vitória é deles. Alguns, que acompanho no Twitter, por exemplo, são a face boa do que é ser adepto de futebol em Portugal, um país que às vezes mais parece uma casa de malucos. São aqueles que continuam o seu caminho de amor ao clube que escolheram e não de ódio a tudo o que é diferente, sem se deixarem influenciar pelo ambiente de guerra e intolerância, que é promovido pelos mesmos clubes que agora também cantam vitória com a revogação da lei. A preocupação dos clubes é simples: voltaram a poder vender bilhetes, precisam do dinheiro que os adeptos lhes deixam e esta é uma lei que lhes limita a receita. Nisso, têm razão – mas, lá está, até um relógio parado dá a hora certa duas vezes por dia. O meu espanto, aqui, prende-se apenas com o conformismo da Liga, que se comportou ao longo de todo este processo como se não fosse nada com ela – enquanto que a FPF, essa, foi sempre clara no seu posicionamento, ao lado da lei agora revogada. Pedro Proença, nesse particular, pareceu o gestor da comissão liquidatária do futebol em Portugal, anunciando em Agosto que “temos de nos habituar” ao cartão e aproveitando a revogação de ontem que este “é o momento de refletir”.
O problema da Liga é que é aquilo que os clubes querem que ela seja. E os clubes são os principais responsáveis pelo que se passa. Também eles têm aqui uma oportunidade de ouro para dar um passo no sentido correto, o de pararem com as guerras de propaganda que são o combustível de que se alimenta o ódio ao rival. A revogação do cartão do adepto, repito, foi apenas o golo do empate. E o adversário, que é a intolerância, continua a jogar melhor, confortavelmente instalado no nosso meio-campo, a ameaçar voltar à vantagem a todo o instante. Enquanto os clubes forem mais céleres a pedir penas pesadas para quem disse um palavrão e agrava o ato com o “crime” de estar vestido com outras cores do que a identificar quem bateu, agrediu ou esfaqueou mas tem a “atenuante” de ser “dos nossos”, este jogo continua empatado e estaremos sempre mais próximos de voltar à desvantagem. Enquanto os clubes mantiverem ativas as centrais de propaganda que difundem na TV e nas redes sociais as teses de supremacia moral face à indignidade do rival continuaremos a optar pelo chutão para o ar em vez de uma saída de bola elaborada. Até podemos marcar um golo, mas nunca estaremos perto de ganhar o jogo.