Manifesto contra o cartão do adepto
O maior problema do cartão do adepto é o desconhecimento total daquilo que se passa no mundo real. Por mim, se é assim, estou contra. Aqui explico porquê e até dou exemplos.
O regresso do público aos estádios tem sido marcado pela polémica em torno do cartão do adepto, medida que já fracassou por onde quer que tenham tentado implementá-la, mas que é agora apresentada pelo Governo português como a panaceia para os males associados ao público do futebol, como “o racismo, a xenofobia e a intolerância”. Os governantes querem impor o uso do cartão e aproveitam a conjuntura de regresso para o fazer. As associações de adeptos consideram que ele, sim, é uma violência e levantam a voz para o contestar – viram-se mesmo tarjas e ouviram-se cânticos em vários estádios, tudo já aproveitado pela Liga para emitir multas. O momento de reconciliação entre o futebol e o seu público, porém, devia convidar à suspensão imediata da medida e a um período de reflexão acerca dos méritos e problemas apresentados pelo cartão. Tudo feito com racionalidade e não com a vitimização que é bandeira de um lado e o medo de perder face nesta operação de propaganda que tem marcado as posições do outro.
O cartão do adepto já foi aprovado há mais de um ano mas ficou em banho-Maria enquanto durou a fase mais crítica da pandemia. Esse período não foi aproveitado para se fazer a tal reflexão, ainda que possa sempre dizer-se que havia mais em que pensar. A mim, deixo-o já bem claro, o que me chateia não é o facto de o cartão do adepto ser uma espécie de Big Brother, que quer vários dados acerca da minha vida como forma de me permitir assistir a jogos no estádio – também dou esse tipo de dados voluntariamente quando faço compras on-line e não me sinto violentado por isso. Aliás, cada vez mais a nossa sociedade será uma sociedade de informação e contra isso não há recuo. Basta pensar na enorme quantidade de meta-dados que passo involuntariamente sempre que clico num texto para o ler na internet e na forma como isso depois se reflete nos anúncios que me são mostrados pelo Google, pelo Facebook ou pelo Instagram.
Já me aborrece um pouco a ideia de o cartão ter custos associados: são 20 euros para o pedir, com validade de três anos, a acrescer ao custo dos bilhetes, que já de si não é nada meigo. Se eu for “adepto-profissional”, daqueles que seguem a equipa para todo o lado, até passo por cima disso: diluídos em várias deslocações, os 20 euros tornam-se quase inexistentes. Já não é assim se eu estiver de férias e resolver ir à bola uma vez sem exemplo. Aí, o custo já pode ser um fator dissuasor contra o qual a própria Liga devia ter-se manifestado, porque está a tirar-lhe gente dos estádios.
O que verdadeiramente me violenta na implementação deste cartão, contudo, é a separação que impõe às famílias e aos grupos de amigos, porque é emitido apenas a maiores de 16 anos. Eu cresci a ser levado aos estádios pelo meu pai – e tal como foi aí que percebi que as pessoas usavam o vernáculo, também foi aí que se consolidou o gosto pelo futebol que as coleções de cromos vinham alimentando. Ora iso seria impossibilitado pela realidade de hoje. Porque, mesmo que tivesse o cartão correspondente, se o meu pai quisesse levar-me para a zona dos adeptos visitantes não podia fazê-lo. E se quisesse disfarçar-se de adepto da equipa da casa, para eu poder ver o jogo com ele, o mais certo era virmos a ter problemas se houvesse expressão de emoções. E se o futebol alberga muito “racismo, xenofobia e intolerância”, se é porto de abrigo para muita gente que recusa o direito à diferença, os diferentes também devem ser protegidos – algo que esta portaria veio impossibilitar. É isto que é intolerável na implementação da medida.
Não sou, hoje, adepto de clubes de futebol, no sentido tradicional do termo. Nos últimos dez anos, comprei por duas vezes bilhetes para ir ao futebol e em nenhuma delas foi para ver o clube de que era adepto antes de ser jornalista profissional. Numa, há um par de anos, fui com o meu filho ver um jogo da II Liga, para dar um abraço ao meu amigo César Peixoto, que nesse dia até fazia anos e vinha à Cova da Piedade como treinador do Varzim. Com o cartão do adepto não poderia tê-lo feito, porque o meu filho ainda não tinha 16 anos. Na outra, fui com a minha companheira assistir a um jogo do clube dela, que é o FC Porto, num estádio da zona de Lisboa. Ficámos na bancada central, o FC Porto ganhou, ela vibrou e, talvez por ser mulher, a ela não lhe disseram nada, mas da fila à frente da nossa foi corrido um adolescente, que estava em família, mas tinha camisola e levantava o cachecol quando gritava golo – o que foi considerado uma falta de respeito para os adeptos da casa. De qualquer modo, ainda que a Lei 113/2019 não seja, do meu ponto de vista absolutamente clara a esse respeito – até onde podem ir os artefactos de apoio à equipa visitante em zonas neutras? – com o cartão do adepto, provavelmente ali não poderíamos ter ficado. Se eu quisesse acompanhá-la naquele jogo, estando ela de camisola e cachecol, teria provavelmente de ir para a zona dos Super Dragões. O que pelo menos daria umas fotos giras e virais nas redes sociais…
O maior problema do cartão do adepto é que trata toda a gente como delinquentes. E se por um lado só uma ínfima percentagem da malta que vai à bola é, de facto, delinquente, não é nos estádios de futebol que deve ser feita a separação do trigo e do joio – e a maior parte da delinquência ocorre fora dos estádios, onde não é preciso cartão do adepto para aceder. Usar o futebol para fazer essa separação só tem um nome: é propaganda. É passar a ideia de que se está a combater um problema gravíssimo quando, na verdade, não se faz a mínima ideia do que se passa no Mundo real. Porque, sendo verdade que a instituição do cartão do adepto é uma resposta à também inaceitável recusa de algumas claques registarem e identificarem os seus membros e ainda que só uma parte dos problemas que atrás descrevi tenha sido criada pelo cartão do adepto – a insegurança do adepto visitante já existia, mas a segregação obrigatória não estava na lei, era discricionária… – esta nova realidade mais não faz do que aumentar a burocracia associada ao simples desejo de ir à bola.