As guerras da propaganda
A cimeira entre os seis primeiros da última época resultou no de sempre: discussão da arbitragem e do VAR. Sim, houve erros, mas ao mesmo tempo houve zero preocupação em valorizar o produto.
Cristiano Ronaldo voltou com estrondo a Old Trafford, bisando no regresso ao Manchester United, mas Bruno Fernandes não quis ficar atrás e fez um golaço na mesma partida contra o Newcastle. Bernardo Silva marcou o golo solitário da difícil vitória do Manchester City sobre o Leicester City. José Mourinho atingiu os mil jogos como treinador e a sua AS Roma ganhou de forma épica à US Sassuolo, com um golo nos descontos, depois de Rui Patrício ter sido tão decisivo a segurar a baliza. Rafael Leão abriu o ativo na importante vitória do Milan sobre a Lazio e Gonçalo Guedes esteve imparável na goleada do Valência CF perante o Osasuna, em Pamplona. E em Portugal, de que se fala? Dos árbitros e do VAR, pois então. Haveria algo mais para discutir? Devia haver, se os clubes não tivessem já desistido de vender o produto que é o futebol para tentarem colher benefícios da sua degradação através das sucessivas guerras propagandísticas que vêm travando.
Dir-me-ão que é assim porque os verdadeiros talentos, aqueles com que enchi o primeiro parágrafo, já foram embora. Mas não é por isso, não só porque quando eles cá andavam já se falava mais dos árbitros do que deles, como também porque outros talentos emergiram entretanto e estão na calha para lhes suceder nas transferências para o estrangeiro – aliás, quando não há jogos por cá, para podermos andar todos a discutir os árbitros e o VAR, todos discutimos os milhões que eles podem valer e se são milhões reais ou da treta para os clubes participarem em operações de lavagem de dinheiro. Dir-me-ão ainda que é assim porque os nossos árbitros são muito maus, mas a esses respondo o que sempre respondi, que não são piores do que os estrangeiros: o que muda de lá para cá são as circunstâncias, é o ambiente em torno do jogo. Dir-me-ão por fim que se uma coisa está mal é importante que dela se fale, para a melhorar, que o silêncio é cúmplice. E é verdade: no fim-de-semana foram cometidos erros flagrantes, dos quais falarei no Futebol de Verdade, às 12h30, mas sem deixar que eles monopolizem o programa. Sucede que melhorar as coisas nunca foi a ideia dos intervenientes – a ideia é e sempre foi a de colher benefícios e não a de acabar com eles. É por isso que, mais do que apontar erros, aos clubes interessa que a sua discussão monopolize o debate acerca dos jogos.
Durante muitos anos achei que isto era assim em Portugal porque, como diz a frase batida, “os portugueses não gostam de futebol, gostam é dos seus clubes”. Hoje já começo a duvidar disso e a achar outra coisa. Que os portugueses não gostam de futebol e odeiam os clubes rivais. Porque é isso que está a crescer a cada dia, a cada programa televisivo sobre o jogo: o ódio a tudo o que sejam cores diferentes, o espírito de que isto não é um jogo mas sim uma guerra. E isso depois reflete-se em campo, em conflitos reais e simulados, só para tentar que o adversário fique mal na fotografia. Como se explica que o jogo entre as duas melhores equipas da Liga anterior acabe com 40 faltas e 12 cartões amarelos, além de um vermelho por acumulação? Há várias maneiras e a mais fácil – e também verdadeira… – passa pela identificação de uma estratégia estapafúrdia do árbitro Nuno Almeida, que aos 3’30’’ já tinha mostrado por três vezes o cartão amarelo. O que é que vai na cabeça desta gente, de facto? “É segurar o jogo”, asseguram-me. Como?! Segurar o jogo a dar amarelos por tudo e por nada logo de início é como educar um filho à porrada e esperar que ele venha a ser um pacifista. Além de que é uma idiotice, pois já se sabe que depois é impossível manter o critério ao logo de toda a partida, sob pena de ela acabar sem quórum.
Acontece que as coisas não ficam por aí. Grande parte da responsabilidade cai em cima de um lote de jogadores de exceção que estão sempre pelo menos tão preocupados em levar a melhor dos conflitos artificiais que arranjam uns com os outros – e depois para a semana são todos amigos, se se encontrarem na seleção – como em jogar futebol. O melhor exemplo do que muda de Portugal para o estrangeiro encontra-se na expulsão de Jorge Andrade, em 2004, na meia-final da Champions entre FC Porto e Deportivo da Corunha, que o central português representava nessa altura. A dado momento, Deco estava no chão e Andrade deu-lhe um toque leve com a chuteira, para o incentivar a levantar-se. O médio portista nem teve de teatralizar, como certamente faria qualquer jogador no ambiente do futebol português, não deu três voltas no ar para simular que tinha sido agredido, que ali jogava-se a Champions, mas ainda assim Markus Merk puxou de um dos cartões vermelhos mais idiotas de que me lembro – sim, que os árbitros estrangeiros também erram. “He is my friend”, repetia Andrade ao árbitro alemão, que não voltou atrás com a decisão. Em Portugal, o assunto teria sido tema de inúmeros programas televisivos, fosse porque Deco (ou qualquer outro) imediatamente simularia uma agressão bárbara, fosse porque logo sairiam da toca inúmeros comentadores e especialistas capazes de assegurar que o toque tinha sido leve e o árbitro estava a favorecer uma das equipas ou o seu contrário, que não, que tinha sido de facto uma agressão, que isso da intensidade não se mede.
Tivemos neste fim-de-semana uma excitante cimeira entre os seis primeiros da última Liga e não a aproveitámos para exaltar o futebol que queremos vender como produto de excelência, seja pela centralização dos direitos televisivos ou pela internacionalização. Isso, que devia ter sido tema de reunião logo no dia em que se conheceu o calendário, para se perceber o que podia fazer-se para promover o produto, provavelmente nem ocorreu à Liga ou aos clubes, especializados em marketing negativo. Em resultado disso, os seis clubes passaram o fim-de-semana inteiro a magicar como é que podiam sair por cima na guerra de impressões e da propaganda. Porque esta todos a travam. Menos a Liga, evidentemente.