O futebol com regras
Seria fácil olhar para a vitória do Newcastle na Taça da Liga e enxergar apenas o poder do capital saudita. Mas não era correto. Porque, felizmente, ao contrário de outras áreas, o futebol tem regras.

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Yasir Al-Rumayyan estava extático quando se fez fotografar segurando a Taça da Liga inglesa com a qual o Newcastle United pôs termo a uma seca de 70 anos sem troféus. O presidente do clube teria a convicção firme de que aquela conquista iria fazer mais pela normalização da imagem do regime saudita no Reino Unido do que qualquer ação política que pudesse vir a ser desenvolvida pelo príncipe real, Mohammed bin Salman. Objetivo cumprido, portanto. Ou pelo menos a primeira parte, que haverá mais no horizonte. Mas isso pouco importava para o Toon Army que festejava em Wembley o triunfo do tradicional clube do Nordeste sobre um Liverpool FC aparentemente em quebra com o aproximar do final da época em que já só pode ganhar a Premier League. Os adeptos centravam a sua alegria em Aleksander Isak, o avançado sueco que querem segurar da cobiça alheia, em Dan Burn, o defesa central que fez o primeiro golo nos 2-1 e se tornou herói improvável da tarde, e sobretudo em Eddie Howe, o treinador que terá rejeitado sondagens para suceder a Gareth Southgate à frente da seleção porque via um caminho de mérito à sua frente em Saint James’ Park.
Há várias dimensões na vitória do Newcastle United. Uma, inevitavelmente, é a política. Oito dos onze titulares na final de Wembley chegaram ao clube depois de 2021, data da compra deste pelo PIF, o fundo soberano associado ao reino saudita que está à frente da revitalização da Liga local e é, ao mesmo tempo, dono de todos os clubes grandes do país. Já escrevi muito sobre o tema – e há links aqui, aqui, aqui ou aqui, por exemplo. Resumindo, é importante conhecermos as razões que levam os sauditas a investir desta forma no desporto, a tornar o sportswashing uma modalidade nacional, extensível a todas as atividades desportivas com implantação no Ocidente, de maneira a aplacar as consciências mundiais em relação a outras coisas que eles escolhem não fazer, como a defesa dos direitos humanos, das mulheres, das minorias étnicas, religiosas ou sexuais ou dos trabalhadores migrantes, ainda vistos como carne para canhão, como danos colaterais necessários nos desafios do progresso. Não dos diz respeito? O que fazem no país deles é lá com eles? Não creio, mas isso ainda é, pelo menos, discutível. O que não podemos deixar passar em claro é a forma como depois os sauditas usam a riqueza que lhes vem dos recursos naturais para alimentar a dúvida nas consciências. Eles matam os migrantes a trabalhar em condições infra-humanas mas depois investem no nosso clube de modo a que possamos voltar a ganhar...
Essa não é, felizmente, a única dimensão da proeza do Newcastle United. Assim que acabou a festa de domingo, em vez do tradicional desfile em autocarro descapotável – que está marcado para dia 29, quando a equipa voltar a estar toda junta –, os jogadores do Newcastle United que não estão ao serviço das suas seleções foram para estágio no Dubai, de forma a atacarem aquele que é o grande objetivo da época, que é a qualificação para a próxima Liga dos Campeões. Não que ao clube lhe faça falta o dinheiro, que o PIF nada em petrodólares. O que lhe faz falta, sim, e de uma forma opressiva, são a possibilidade de gastar esse dinheiro e o estatuto que a presença naqueles palcos permite, porque os seus responsáveis sabem que só andando na Champions de uma forma regular poderão cumprir as regras escritas e não escritas do futebol. Pensem, por exemplo, em Aleksander Isak, o atacante sueco que é um dos jogadores mais valorizados no plantel – o Transfermarkt avalia-o em 75 milhões, menos cinco apenas do que Bruno Guimarães. Isak tem 25 anos e contrato com o Newcastle United até 2028, a ganhar quase nove milhões por ano, mas o seu futuro é uma das novelas mais quentes do futebol inglês, porque ele dificilmente se manterá ali se a equipa não lhe permitir obter o reconhecimento desportivo que a sua valia exige dele. Essas são as regras não escritas, o código de conduta do futebol, que manda sempre os melhores dos seus executantes pensar na carreira pelo menos tanto como no dinheiro – caso contrário já estaria toda a gente a disputar a Liga Saudita com Ronaldo.
E a questão é que há mais, há as regras que, de facto, estão plasmadas nos regulamentos. A estas, há quem consiga contorná-las, em batalhas legais que são e serão eternas sempre que se chega a determinados montantes, mas elas estão lá. Após um grande investimento inicial, que tirou do horizonte o sobe-e-desce entre a Premier League e o Championship, o PIF não transformou logo o Newcastle United de uma forma artificial num emblema de bandeira como o Manchester City – dinheiro do Abu Dhabi – e o Paris Saint-Germain – do Qatar –, ou num potentado da alta finança como o Chelsea – que cresceu à sombra da fortuna de um oligarca russo e agora é um dos símbolos do futebol ‘corporate’, com capital norte-americano. O PIF pode ter fundos ilimitados, mas tanto o Fair-Play Financeiro da UEFA como as Regras de Lucro e Sustentabilidade da Premier League limitam-lhe a possibilidade de os gastar. Os mais de 40 milhões de euros – pelo menos – que entrarão em caixa se o Newcastle United vier a terminar a Premier League numa das cinco primeiras posições – as que, se a Inglaterra acabar a época europeia como uma das duas melhores nações do ranking, darão acesso à próxima Champions – serão fundamentais para permitir a Paul Mitchell, o diretor desportivo, e Eddie Howe, o treinador, melhorar um plantel que não é assim tão rico em valor de mercado. Os jogadores do Newcastle United estão avaliados pelo Transfermarkt em 606 milhões de euros, menos de metade dos do Manchester City, que acendem aos 1.300 milhões. O plantel do Newcastle United é, de acordo com o mesmo portal especializado em transferências, apenas o oitavo plantel mais rico da Premier League, atrás igualmente dos de Arsenal, Liverpool FC, Chelsea, Tottenham, Manchester United e Aston Villa.
É graças à existência destas regras que podemos hoje valorizar o trabalho feito por Eddie Howe à frente da equipa. Que nos parecerá normal que ele cobre mais de sete milhões de euros por ano no seu contrato – e possa elevar a conta aos dez milhões se levar a equipa à Champions e receber o prémio correspondente. É à conta destas regras que a fotografia que vale é a de Howe com a taça ao lado, no avião, e não a de Al Rumayyan a levantá-la em Wembley. Porque no futebol, como na vida, há duas maneiras de olhar para o sucesso. Uma passa pela aceitação da lei da selva, em que os mais fortes fazem valer o seu poder – político, social, financeiro, popular, o que quiserem –, remetendo as minorias para os ghettos de onde acham que elas nunca deviam ter saído. E a outra pela valorização de quem o obtém a seguir regras que tornam tudo mais difícil mas ao mesmo tempo mais saboroso. Nesta dualidade, sei bem qual é o meu canto.