O faz-tudo
O Portugal de Martínez anda melhor quando anda ao ritmo de Bruno Fernandes, decisivo nos jogos contra as outras equipas mais fortes do grupo e autor de um recital na partida de ontem com o Luxemburgo.
Bruno Fernandes é a grande figura da seleção nacional neste momento, porque é o jogador mais completo de que Roberto Martínez pode dispor. Bruno assiste, marca, lança e recupera. Ontem, nos 9-0 ao Luxemburgo, fez um golo, tornando-se o segundo melhor marcador da equipa nesta qualificação, com quatro finalizações bem-sucedidas, só uma atrás de Ronaldo. Além disso, criou outros três tentos, tornando-se o melhor assistente não apenas da equipa nacional como de todos os grupos do Europeu, com cinco passes para golo. Foi ainda a sua chegada a zonas mais adiantadas do campo em momentos de pressão que gerou outros lances de perigo, como o do segundo golo, com assistência de Bernardo Silva para Gonçalo Ramos após recuperação de bola do médio do Manchester United. E é o outro argumento que ele traz à equipa, a capacidade de esticar o jogo se for caso disso, que me leva a preferir a versão base com ele ao meio, mais atrás, no comando do meio-campo, e Bernardo Silva a partir da meia-direita à alternativa, que seria tornar permanente a troca posicional que os dois ensaiam frequentemente no decorrer dos jogos. Ontem escrevi aqui que para a seleção render a um nível superior Roberto Martínez teria de criar um ambiente tático que lhe permitisse tirar o máximo daqueles que têm condições para ser os seus jogadores-chave e identifiquei Bernardo Silva, Bruno Fernandes e Rafael Leão. Ainda que possa talvez ser um risco grande contra rivais mais fortes do que o macio e bem-intencionado Luxemburgo que se apresentou à degola no Algarve, o 4x4x2 de ontem, transmutado em 3x2x5 ofensivo, é a tentativa mais próxima de o conseguir. Mais próxima até do que o 3x4x3 por onde Martínez começou e que era até aqui o meu favorito – o 4x3x3 de Bratislava não convenceu, sobretudo por incapacidade de sair com qualidade de trás, faltando perceber se isso aconteceu porque faltava o pé esquerdo de Inácio, a agilidade na distribuição de Danilo ou simplesmente porque sobrava a pressão feita pelos adversários na saída de bola, ontem inexistente. Ontem viu-se Bruno Fernandes a comandar pela sua capacidade de ser um faz-tudo e Leão finalmente livre para desequilibrar na linha, fruto da assimetria do sistema, que manda o lateral esquerdo jogar por dentro no ataque. Os mais idealistas podem alegar que lhes sabe a pouco. Os saudosos, por exemplo, da excelente equipa nacional de 1996, dona de um jogo sempre mais rendilhado, de toque curto e de pé para pé, podem acompanhá-los na resistência, porque desta forma Bernardo Silva não assume o protagonismo que poderia ter se fosse ele a mandar e a gerir os ritmos coletivos. Mas, por muito que haja interesse mediático em criar aqui uma sequela da novela Mazzola-Rivera, que apimentou a história da seleção italiana na década de 70, esta parece-me uma questão bem resolvida. No fundo, Bruno Fernandes joga na posição e com as funções que tem no United de Ten Hag e Bernardo na posição e com as funções que mais vezes desempenha no City de Guardiola. Complicar para quê?
Se a seleção trabalha como eu quero... Há duas coisas que ninguém pode dizer-vos com um grau mínimo de certeza a propósito dos jogos da seleção nesta fase de qualificação do Europeu. Uma é que os resultados só têm sido bons porque os adversários são fracos. Uma das mais velhas e sempre válidas máximas do futebol é que só podes ganhar ao adversário que está à tua frente. Não é possível estar num grupo com Eslováquia, Bósnia, Luxemburgo, Islândia e Liechtenstein e ganhar à Espanha, à Inglaterra ou à França. Nenhum dos adversários de Portugal esteve no último Mundial, é certo, mas em contrapartida só dois dos dez grupos têm mais do que uma equipa mundialista – o B, com França e Países Baixos, e o D, com Croácia e Gales. E isso não impede que outros quatro – o A, com a Escócia, o E, com a Albânia, o G, com a Hungria, e o H, com a Eslovénia – sejam à data de hoje liderados por seleções que não estiveram no Mundial. Ontem lembrei-me com gosto da rábula de Beatriz Costa em 1934, por alturas da primeira grande reformulação do futebol português, após um 9-0 que apanhámos da Espanha, na qualificação para o Mundial desse ano. “Se a seleção trabalha como eu quero, agora é que não falha: 9-0”, cantava a atriz, na “Canção do Futebol”, de Nascimento Rodrigues, integrada no filme “Trevo de Quatro Folhas”. Ora nem nessa altura estava tudo errado nem agora, só porque Portugal se colocou no lado certo dos 9-0, está tudo certo. Mas justificar o percurso limpo da seleção nesta fase de qualificação apenas com a fragilidade de rivais que não são piores do que os que estão a deixar outros mundialistas em risco também é uma forma muito enviesada de olhar para o futebol.
A culpa é do Ronaldo? A segunda verdade absoluta que nos tentam vender agora é a de que a equipa se liberta sem Ronaldo. A base de estudo são estes dois últimos jogos, a dificuldade com que se ganhou na Eslováquia com ele e o brilhantismo atingido sem ele frente à equipa do Luxemburgo, subitamente convertida em rival de qualidade suficiente para se aferir isso, até pelos mesmos que diminuem a força do grupo de Portugal. Já no Mundial se viram esses raciocínios. Quando Portugal ganhou por 6-1 à Suíça na sequência do afastamento de Ronaldo do onze, ficara provado que sem ele em campo toda a gente rendia mais – mas depois a derrota com Marrocos veio desmentir essa convicção, porque toda a gente rendeu menos. Da mesma forma que ontem toda a gente esteve bem sem Ronaldo em campo e a equipa chegou aos 9-0 ao Luxemburgo, em Março Portugal ganhou fora a este mesmo adversário por 6-0 (e falhou um penalti) com Ronaldo a jogar e a marcar dois golos. Mas aí, lá está, já foi porque a equipa que estava do outro lado era fraca. No plano meramente futebolístico, não encontro no Ronaldo de hoje nenhuma razão que justifique a diminuição do rendimento dos colegas de equipa. Há uns cinco anos, com Ronaldo no apogeu do seu futebol de busca da profundidade, forçando a equipa a mais transições rápidas, talvez fosse complicado encaixar nele o jogo mais rendilhado de gente como Bernardo Silva. Mas o Ronaldo de hoje já não tem essa explosão e, tendo percebido isso, joga de maneira diferente. Pode haver, admito, alguma limitação mental de jogadores que, com o capitão em campo, se julguem quase que obrigados a servi-lo antes de servir a equipa. Mas isso caberá ao treinador perceber e, se for o caso, pôr um ponto final no tema. Ainda assim, confesso, gostava de ver a equipa testar-se sem Ronaldo contra – lá está... – um adversário mais poderoso.
As contas bem feitas. Ontem, quando vos disse, tanto na RTP como depois no Futebol de Verdade Flash, que a vantagem de oito pontos sobre o terceiro classificado do seu grupo assegurava que a Portugal bastaria uma vitória e um empate nos jogos com o Liechtenstein (fora) e a Islândia (em casa) para se qualificar não estava a mentir-vos, mas estava a seguir o caminho mais fácil – ou pelo menos o dos jogos teoricamente mais fáceis. Na verdade, Portugal qualifica-se imediatamente se ganhar, a 13 de Outubro, no Dragão, à Eslováquia, na próxima partida. Porque nesse caso, com três jornadas por disputar, ficaria com oito pontos de avanço dos eslovacos e, na pior das hipóteses, se nesse mesmo dia o Luxemburgo ganhasse à Islândia em Reiquejavique, também dos luxemburgueses. Qualificam-se duas seleções e, nesse cenário, Portugal só ficaria de fora se fosse ultrapassado por ambas as equipas. Sucede que Luxemburgo e Eslováquia não podem fazer ambos os nove pontos que faltariam a partir daí – defrontam-se três dias depois no grão-ducado num jogo em que não podem ganhar os dois. Aliás, mesmo o empate contra a Eslováquia na sétima jornada só não apura Portugal no imediato se, nesse mesmo dia, o Luxemburgo evitar a derrota na Islândia. Portanto, seja já no dia 13 ou mais tarde, não restam dúvidas de que Portugal estará na fase final e de que a luta neste grupo será pelo segundo lugar.