O espírito dos tempos
O "erro de software" no sorteio da Champions ilustra na perfeição os caminhos apertados pelos quais segue o futebol de hoje. Diferente do que era há 100 anos e do que será daqui por mais um século.
Ainda eu não estava bem refeito da confusão que a UEFA armou com o sorteio da Liga dos Campeões, que ainda por cima atingiu o pico do repete-não repete enquanto eu comentava, no Futebol de Verdade, a sorte e o azar dos clubes portugueses, quando li a notícia acerca da venda dos direitos televisivos da Liga Espanhola para as próximas cinco épocas à Movistar e à DAZN, por 4.950 milhões de euros. Há quem veja maldade em tudo e imediatamente houve quem a tenha visto no “erro de software” que levou a que, quando se ia sortear o opositor do Villarreal, tenha aparecido o Manchester United, ou que quando era altura de perceber quem tocaria em sorte ao Atlético Madrid, se tenha colocado a hipótese do Liverpool FC. A mim pareceu-me nabice pura e simples e que o “software” tem as costas largas, mas o caso serve na perfeição para ilustrar os caminhos apertados pelos quais segue o futebol nos dias de hoje.
Ontem à noite, no 360, da RTP3, ainda disse que não me parecia sequer necessário ter um programa de computador para mandar num sorteio daqueles. Bastava ter a cabeça fresca e respirar fundo antes de cada ato. Cada um dos segundos classificados podia jogar com todos os primeiros, à exceção dos que fossem do seu próprio país e dos que tivessem jogado no seu grupo. É verdade que o facto de haver quatro equipas inglesas complica um pouco mais as coisas. O Chelsea, por exemplo, não podia jogar com o Manchester City, com o Liverpool FC, com o Manchester United nem com a Juventus, só lhe restando quatro adversários possíveis – e imaginem que, a quatro emparelhamentos do fim, só lhe restavam essas quatro hipóteses. Talvez isso já sejam mais camadas do que as que a mente humana está habilitada a gerir por antecipação. Ainda assim, um sorteio como o dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões é uma brincadeira de crianças ao pé do que vai exigir a nova Liga Espanhola, para satisfazer as complicadas nuances dos operadores audiovisuais – tinha escrito televisivos, mas tive de alterar, que são muito mais do que isso – que lhe compraram os direitos.
Ora, façam lá o favor de encher o peito de ar antes de vos contar. A DAZN e a Movistar pagam 990 milhões de euros por cada uma das próximas cinco Ligas, mas em contrapartida a Liga espanhola compromete-se com um extenso pacote de condições que complicará muito mais o sorteio e, sim, precisará mesmo de software. Cada uma fica com cinco jogos por jornada, incluindo o jogo em canal aberto, comercializado ora por uma, ora pela outra, de forma alternada. A DAZN transmite o clássico entre o Real Madrid e o FC Barcelona da primeira volta e a Movistar o da segunda. Cada operador terá, no máximo, 18 jogos do Real Madrid e outros tantos do FC Barcelona. Além disso, cada um terá apenas um dos jogos dos dois gigantes com Valência CF, Atlético Madrid, Athletic Bilbau e Sevilha FC, devendo, no respeito desta norma, escolher de forma alternada os seus cinco jogos por jornada. Cansados? É que a coisa vai complicar. A Movistar terá três jornadas em exclusivo, sempre nos meses de Setembro, Dezembro e Março ou Abril e nas semanas imediatamente anteriores a rondas europeias. Mais: nessas três jornadas, o Real Madrid, o FC Barcelona e o Atlético Madrid enfrentarão, das duas uma, ou equipas que na época anterior tenham ficado nos seis primeiros lugares da tabela ou o Valência CF, o Athletic Bilbau ou o Betis Sevilha, caso estes tenham ficado abaixo do sexto lugar.
Sempre que há confusões como a do sorteio da UEFA aparece meia dúzia – são muito mais do que meia dúzia, na verdade – de “maduros” a dizer que o futebol a sério era o dos velhos tempos, em que os sorteios não eram condicionados, que isto é o capital a mandar, que já não é desporto mas sim indústria. Tenho alguma curiosidade em saber se muitos deles são os mesmos que me acusaram de “revisionismo histórico”, por causa da minha opinião acerca da validade do Campeonato de Portugal, prova máxima do futebol português entre 1922 e 1934 – para alguns até é mais, é entre 1922 e 1938, mas dessa ideia já não comungo – e que me tem levado a contar, no meu Substack, as deliciosas histórias dos 100 anos do futebol de competição nacional no nosso país. E o que é que uma coisa tem a ver com a outra? Tem. Porque o Mundo não avança sem evolução, mas também não avança se renegarmos o que fomos. Contestar que um clube possa ser campeão só com três jogos contra o mesmo adversário, como o FC Porto em 1922, ou disputando apenas duas partidas, porque não havia grande facilidade de deslocação entre o Funchal e o continente, como o Marítimo em 1926, mas depois defender o sorteio puro para a Champions, porque esse é o espírito do futebol-desporto, porque só assim seguiremos impolutos contra os malefícios da indústria, é baralhar as referências para lá do razoável.
O futebol evoluiu. Há um século era uma coisa. Hoje é outra. Há um século não havia erros de software nos sorteios. Há 80 anos, o maior goleador que Portugal alguma vez tinha visto abandonou a carreira prematuramente para pagar as dívidas da sua casa comercial com a receita da festa de despedida. Há 70 anos os jogadores de uma equipa tiveram de aguardar longos minutos, sentados no chão, depois do seu jogo, para saber se eram campeões numa Liga decidida por diferença de golos porque, sem TV a escrutinar, o árbitro do jogo do rival o prolongou “ad aeternum”. Há 60 anos, uma equipa portuguesa viu-se privada de uma final da Taça de Portugal porque teve de disputar uma meia-final com as reservas, apenas um dia após ter jogado a final da Taça dos Campeões Europeus. Há 40 anos ainda havia jogos de I Divisão em campos pelados – para quem não sabe o que são, são campos de terra batida. Hoje há mais dinheiro a circular e os campeonatos obedecem a uma série de restrições que são pouco identificáveis com o espírito mais puro dos primórdios, mas que refletem aquilo que nós somos no presente.
Daqui a cem anos não sabemos como vai ser. Há-de-ser diferente, muito diferente do que é hoje. Mas esperemos que não venham dizer que o que fazemos hoje, afinal, não servia para nada. “O quê?! Havia jogadores impedidos de jogar porque estavam lesionados?! Não tinham a tecnologia de cura instantânea? Isso nem era futebol nem era nada!”
Qual foi o clube que há 30 anos jogava na primeira divisão com campo de terra batida?