Quantos campeonatos são?
A história vê-se de trás para a frente. De nada serve olharmos para o passado com as noções do que o futuro nos trouxe. Afinal, desde quando há campeão nacional em Portugal?
Começo por vos fazer uma pergunta. Se um dia alguém vos perguntar quantas vezes foram o FC Porto e o Benfica campeões da Europa, o que respondem? Duas cada um, certo? O Benfica em 1961 e 1962 e o FC Porto em 1987 e 2004. E a última coisa que esperam ouvir em resposta é a desvalorização dos títulos conquistados no campo, utilizando argumentos como “nos anos 60 e 80 não valia, porque não havia fase de grupos, era só uma Taça a eliminar” ou “desde os anos 90 não vale, porque já não há Taça dos Campeões à séria, na Liga entram até os quartos dos melhores campeonatos”. A história, contudo, deve ser vista num só sentido: de trás para a frente. E, a propósito da decisão, que está para breve, da comissão criada pela Federação Portuguesa de Futebol para definir o que chamar a quem venceu o Campeonato de Portugal, por eliminatórias, antes de haver uma Liga por jornadas, a razoabilidade só pode ditar um caminho: foram campeões de Portugal, pois então.
O problema, aqui, tem a ver com a coexistência de duas provas, o Campeonato de Portugal e o Campeonato da Liga, durante quatro anos. O Campeonato de Portugal foi criado em 1922, reunindo, primeiro, os campeões de Lisboa e do Porto e, a partir de 1923, os campeões e algumas das melhores equipas dos outros regionais entretanto criados. Aqui tem a história do primeiro campeonato de Portugal, ganho pelo FC Porto, que escrevi no âmbito do F80, a série que estou a publicar para comemorar o centenário do futebol de competição nacional em Portugal e que prevê uma biografia diária de um jogador e a revisão de cada campeonato, sempre ao domingo. Este é um conteúdo Premium, mas vou deixá-lo em aberto até ao final da semana, para lhe matar a curiosidade.
Em Março de 1934, a seleção nacional foi jogar a Espanha a qualificação para o Mundial que se disputaria meses mais tarde em Itália. O resultado foi escabroso: apanhámos 9-0 e fomos eliminados. Gerou-se uma comissão de crise e foi decidido copiar o modelo competitivo espanhol, com uma Liga em que os clubes pudessem jogar todos contra todos nacionalmente, aumentando a exigência e, dessa forma, julgava-se, deixando os futebolistas mais preparados para estes confrontos internacionais. A ideia foi logo defendida no dia seguinte, no Diário de Notícias, por Ricardo Ornellas, jornalista e co-selecionador de Portugal nessa tarde em Chamartín. “Quando não houvesse outras provas, bastava apontar-se que a Itália, a Inglaterra, a Áustria e a Espanha, grandes potências em futebol, são exatamente as nações onde o rigor dos campeonatos e a sua regularidade são respeitados por completo. Por que não se pensa em Portugal na criação de uma Liga Nacional?”, escrevia Ornellas. Assim se fez: em 1935 jogou-se a primeira edição da Liga, entre Janeiro e Maio.
Ora é aqui que se coloca a questão. É que depois da Liga, que era ainda experimental, pois se temia que não houvesse capacidade de angariar receita suficiente para suportar os custos, continuou a jogar-se o Campeonato de Portugal, por eliminatórias, nesse primeiro ano entre Maio e Junho. E esta realidade dúplice manteve-se durante quatro anos, até que, em 1938, a FPF decidiu transformar a Liga no Campeonato Nacional da I Divisão e o Campeonato de Portugal na Taça de Portugal, mantendo-lhes os formatos e definindo claramente que o campeão era o vencedor da Liga. A disputa já é tão antiga quanto a questão em si? Quem são os campeões nacionais? Em “Números e Nomes do Futebol Português”, uma edição de 1950, Ornellas é claro na tese de que o título de campeão nacional só devia ser entregue a quem ganhou a prova por jornadas, portanto, a quem ganhou a Liga de 1935 a 1938 e o Nacional da I Divisão daí para cá. Henrique Parreirão, jornalista e especialista em história do futebol, que ainda conheci no Record, defendia a tese contrária, segundo a qual os campeões nacionais eram os vencedores do Campeonato de Portugal e, depois, os vencedores do Campeonato Nacional da I Divisão, optando por salientar o caráter experimental da Liga nos primeiros quatro anos.
A questão, que durante anos chegou a dividir “A Bola” e o “Record”, a primeira seguindo a tese de Ornellas, o segundo defendendo a ideia de Parreirão, foi relançada no panorama mediático há uns anos por Bruno de Carvalho, à data presidente do Sporting, mas na verdade devia interessar a muito mais gente. A começar por clubes como o Olhanense, o Marítimo, o Belenenses ou o já extinto Carcavelinhos (um dos que deu lugar ao Atlético), que também se sagraram vencedores do Campeonato de Portugal. No âmbito do F80, li muito. Li imprensa da época, li obras como a referida compilação de Ornellas e outras publicadas pelos clubes. E fui ver como se fez no estrangeiro. Em Espanha, por exemplo, também começou por se chamar Campeonato de Espanha à atual Taça do Rei, sendo que os espanhóis resolvem a coisa de forma diferente: chamam a quem venceu a Liga, criada em 1928, “campeão da Liga”. Os próprios clubes, no palmarés, não se dizem “x vezes campeão de Espanha”, mas sim “x vezes campeão da Liga”. Em Inglaterra, também se chama “campeão da Taça” ao vencedor da FA Cup, a Taça de Inglaterra, que foi a primeira prova da história do futebol mundial, criada ainda muito antes de se extinguir o Século XIX.
Em Portugal, à data dos eventos, qualquer vencedor do Campeonato de Portugal se dizia – isso mesmo – campeão de Portugal. O Benfica, que sempre foi quem mais se opôs à tese de Bruno de Carvalho, considerava as equipas que venceram a prova a eliminar como campeãs de Portugal, conforme pode ver-se no cartaz feito para anunciar o banquete de homenagem à equipa campeã, em 1930 ou, já com a Liga em andamento – e nesse ano ganha pelo FC Porto – no prospeto para a cerimónia de homenagem à equipa que venceu o Campeonato de Portugal de 1935, em Santarém. Não podia ser de outra forma. Naquela altura não se sabia que o futuro nos traria a implantação de uma competição por jornadas, como agora não se sabe qual vai ser o formato do campeonato daqui a mais cem anos. Não há aqui qualquer tipo de usurpação ou oportunismo.
Não me merece qualquer dúvida que os clubes vencedores do Campeonato de Portugal entre 1922 e 1934 – três vezes o FC Porto e o Belenenses, duas o Sporting e o Benfica, uma o Olhanense, o Marítimo e o Carcavelinhos – foram campeões de Portugal. Como não me merece qualquer dúvida que a partir de 1939, o campeão foi o vencedor do Campeonato Nacional da I Divisão. A grande questão está naqueles quatro anos em que se jogaram o Campeonato de Portugal e a I Liga. Quem era campeão? Os vencedores do Campeonato de Portugal (duas vezes o Sporting, uma o FC Porto e uma o Benfica)? Ou os vencedores da I Liga (três vezes o Benfica e uma o FC Porto)?
Não há um documento oficial a decretar uma coisa ou outra. Se ele existisse já teria aparecido. Entramos, por isso, no domínio do que é razoável. Da opinião. Do que cada um acha melhor. E por mais que venha uma comissão dizer uma coisa, quem pensa de forma contrária poderá sempre continuar a bater-se pelas suas ideias, porque aqui não há uma verdade absoluta. Assim sendo, a minha opinião é esta: se se via a Liga como um passo para o futuro, no sentido de aproximar Portugal das melhores práticas do estrangeiro, fará sentido considerar os seus vencedores como tendo sido campeões nacionais, remetendo para segundo plano os que nesses quatro anos ganharam o entretanto extinto Campeonato de Portugal. É incoerente? É. Sem dúvida. Porque é que o Benfica que ganhou o Campeonato de Portugal de 1930 deve ser campeão nacional e ao que venceu a mesma prova em 1935 deve ser retirada essa honra? Por uma razão muito simples: entretanto apareceu uma competição considerada melhor e mais completa. E a história vê-se no único sentido possível: do passado para o futuro.
Podem decidir o que quiserem mas há um facto que não vão conseguir alterar, quem festejou o título de campeão nacional entre 1935 e 1938 foram os vencedores dos campeonatos de Portugal e nunca os vencedores dos campeonatos das ligas, isto é como se daqui a80 anos decidirem que os vencedores da taça da liga é que são os campeões pelo que o vitória de Setúbal seria o primeiro campeão de Portugal o que obviamente não foi
O Sr. António Tadeia afirma que não existem documentos que decreta oficialmente a correspondência das competições nacionais de futebol a partir de 1935. Não é verdade. Existe um documento oficial da FPF "Relatório e Contas da Época de 1938-1939" que é taxativo. Inequívoco. Indesmentível. Foi publicado pelo Benfiquista Alberto Miguéns e a sua leitura pode ser feito por quem quer que seja que saiba ler português:
https://em-defesa-do-benfica.blogspot.com/2021/11/decidir-o-que-ja-foi-decidido.html
Cumprimentos
Victor João Carocha