O efeito Draxler
Julian Draxler será uma adição extraordinária de qualidade à Liga Portuguesa, mas continua a deixar uma equação por resolver na equipa do Benfica: quem é que marca os golos?

O Benfica deu aquele que até ver é o principal golpe nesta reta final de mercado entre clubes portugueses, ao assegurar o empréstimo do extremo alemão Julian Draxler, excedentário no plantel do Paris Saint-Germain, mas seguramente uma extraordinária adição de qualidade ao nosso campeonato. Se chegar em boas condições, concentrado e focado, Draxler será um excelente upgrade ao plantel encarnado, mesmo que traga valências um pouco diferentes das que Roger Schmidt poderia tirar de Ricardo Horta, o alvo inicial, sobretudo ao nível do golo. Mas se a relação com o golo é cada vez mais uma questão a avaliar antes de se formar um plantel, não é a única.
Há aqui duas formas de ver a coisa. Uma delas passa pela submissão dos números de cada jogador aos números da equipa. Isto é: se uma equipa cria, alguém acabará por fazer golos. Se, depois, na equipa estiver um fenómeno goleador como Jardel, Ronaldo, Lewandowski ou Haaland, é muito normal que os números dos restantes jogadores acabem por se ressentir. Por exemplo, no FC Porto de 1999/00, a melhor época na carreira de Jardel, que a acabou com 56 golos em todas as competições, não houve mais ninguém a chegar sequer à dezena de concretizações. A questão é que esse FC Porto não ganhou o campeonato. A segunda melhor época da carreira de Jardel, a que fez no Sporting de 2001/02, com 55 golos em todas as competições, ajudando a ganhar essa Liga e a Taça de Portugal, mostrou uma realidade diferente: o segundo maior marcador da equipa, João Pinto, fechou a temporada com 12 golos, o melhor número dos seus derradeiros onze anos de carreira.
Laszlo Bölöni, o treinador desse Sporting, era seguidor precisamente da segunda forma de ver a coisa, a que defende que os números de uma equipa se constroem através da soma dos números de cada jogador. Na altura eu era jornalista de banca e acompanhei, no final desse Verão de 2001, ao serviço do Record, o estágio de pré-época que os leões fizeram na Suíça. Recordo uma conversa em “off” com o treinador romeno – mais de 20 anos depois não haverá mal em partilhá-la... – na qual ele defendia que o Sporting ainda precisava de um avançado e eu lhe perguntava porquê, se já tinha João Pinto, Sá Pinto, Niculae e ainda Spehar. A resposta de Bölöni socorria-se de uma coisa tão singela como a revista de lançamento de época, com as fichas estatísticas dos jogadores. Com exceção do seu compatriota Niculae, que ele tinha ido buscar a uma realidade menos exigente, como era a do campeonato romeno, nenhum dos atacantes que ele tinha à disposição fizera sequer dez golos em nenhuma das últimas cinco temporadas. E veio Jardel, do Galatasaray, em cima do fecho do mercado, ajudando a virar o destino daquela época.
Sempre vi a insistência do Benfica em Horta à luz dessa conversa velha com Bölöni. Nunca me pareceu que ao Benfica faltasse qualidade na frente. Mas, de facto, não abundam os golos no histórico dos jogadores que Roger Schmidt tem escolhido para jogar perto de Gonçalo Ramos, ele próprio entronizado titular mais pela forma coletiva de encarar o jogo do que à conta de uma capacidade para marcar 30 golos numa época que ainda ninguém lhe adivinha. Neres fez seis, oito e quatro golos nas últimas duas épocas e meia no Ajax, tendo depois perdido seis meses no Shakhtar à conta da guerra na Ucrânia. Rafa está melhor, com números ao nível do João Pinto de Jardel – onze, nove e doze golos nas últimas três épocas. A questão é que o João Pinto de Jardel tinha Jardel... E João Mário está pior, com um, dois e quatro golos nas últimas três temporadas – melhorará certamente este ano, porque está a bater os penaltis. Era muito por causa desta necessidade de golos, além de poder dar-lhe mais uma alternativa e rodar sem ter de recorrer com tanta frequência a Chiquinho ou Diogo Gonçalves, que estão um patamar abaixo, que me parecia que o Benfica queria Horta, autor de 24, 15 e 23 golos nas últimas três temporadas pelo SC Braga.
Ora Draxler, sendo um jogador de uma qualidade inquestionável, provavelmente a maior estrela do campeonato português assim que assinar contrato – será, por exemplo, o único campeão mundial nesta Liga – também não tem assim tanto golo. Surpreendeu quando fez dez na primeira meia temporada pelo Paris Saint-Germain, em 2016/17, mas daí para cá não mais passou dos cinco. O que pode ter que ver com uma utilização necessariamente mais rara num plantel de estrelas, com questões táticas – muitas das vezes que jogou fê-lo mais na zona de meio-campo, numa espécie de híbrido entre terceiro médio e extremo-esquerdo, de forma a encaixar a mobilidade de Mbappé a partir daquela faixa – ou até com a inadaptação a um balneário que não deve ser fácil. Porque nestas coisas há jogadores que crescem competitivamente nesse tipo de ambiente, quando se sentem apenas uma peça da engrenagem, e outros que precisam de se sentir especiais para darem de facto um rendimento especial. Como em tudo no futebol, nisto não há uma verdade absoluta.
Ainda assim, muito provavelmente a jogar entre terceiro médio e quarto atacante – o que faz neste momento João Mário –, o melhor Draxler pode ser decisivo na Liga Portuguesa. E isto nem sequer implica que João Mário tenha de sair da equipa: dependendo da dificuldade dos jogos, Schmidt poderá dar à equipa outro tipo de equilíbrios, abdicando também, à vez, de Neres ou até de Rafa. Se pertence à segunda escola, a de Bölöni, ainda tem é de resolver uma equação: no meio disso tudo, quem é que marca os golos?