O clássico das contradições
FC Porto e Benfica voltam ao campo com níveis de exigência e pressão diferentes e forçados a mudar face ao jogo da Taça de Portugal. Nessas condições, o que farão Conceição e Veríssimo?
Poucos clássicos terão sido lançados em bases de tanta imprevisibilidade como o que vai jogar-se logo à noite entre FC Porto e Benfica (21h). E a imprevisibilidade não está relacionada apenas com a mudança de comando técnico nos encarnados, que chegam ao Dragão para o primeiro jogo sem Jorge Jesus e com dois treinos debaixo das ordens de Nelson Veríssimo. Joga-se no meio de duas gigantescas contradições: a de um FC Porto que entra em campo com o conforto de um ano de 2021 sem derrotas na Liga e, portanto, sem grande pressão, mas apertado pela exigência que lhe foi colocada pela vitória do Sporting, ontem; e a de um Benfica pressionado pela terceira posição na tabela, pelo risco de ficar a sete pontos de dragões e leões e pela eliminação na Taça de Portugal, mas com réstias de inimputabilidade em cima do novo treinador, que poderá sempre dizer que não é possível mudar nada em dois dias. Quem gerir melhor estes aspetos terá uma passagem de ano mais satisfatória.
As duas equipas abordam o jogo sem elementos importantes. Ao FC Porto deve ainda faltar Pepe, como estarão seguramente de fora Díaz e Evanilson, enquanto que o Benfica vai para o relvado sem Otamendi, Darwin e Grimaldo. Faltam, portanto, os comandantes dos setores defensivos e a principal fonte de inspiração atacante aos dois treinadores. E aqui a questão que se coloca é como vão eles resolver os problemas. Ora se no caso do FC Porto já são mais ou menos conhecidas as ideias de Conceição, é mais difícil – por falta de histórico recente – entrar na cabeça de Veríssimo. O mais provável é que o FC Porto substitua Evanilson por Fábio Vieira, o que de certa forma vem reduzir a intensidade da pressão que foi a principal arma da equipa no clássico da semana passada, mas lhe incrementa a capacidade de ligação no meio-jogo, por sua vez prejudicada pela ausência de Díaz. E se atrás não há dúvidas de que Fábio Cardoso será o substituto de Pepe, na frente esta pode ser uma das últimas oportunidades de Corona.
O mexicano foi o melhor jogador da Liga ganha pelo FC Porto em 2020, mas entretanto deixou que o aproximar do fim do contrato o transformasse numa banalidade, provavelmente saída da falta de compromisso. Anda por lá um pouco esquecido, à espera da hora de ir embora. E aí pode até travar-se um paralelo com Pizzi, que foi o destaque do Benfica nesse campeonato, com 18 golos e 14 assistências, era a principal referência do Benfica pré-Jesus e entretanto quase caiu no anonimato, de onde saiu para protagonizar o incidente que levou à queda do treinador. Ora se Corona pode voltar dos esquecidos, poderá o mesmo dar-se com Pizzi? O capitão foi sempre titular nos jogos em que o Benfica foi liderado por Veríssimo, precisamente nessa ponta final da época de 2019/20 – sendo que os outros cinco foram André Almeida e os entretanto transferidos Rúben Dias, Jardel, Gabriel e Chiquinho. Será assim tão descabido pensar em Pizzi no onze benfiquista? Eu diria que não, mas aí tudo dependerá da organização tática da equipa.
E como vai organizar-se o Benfica? No 3x4x3 ou no 3x5x2 que recolhiam as preferências de Jesus nestes últimos tempos? Ou no 4x2x3x1 que Veríssimo usou na anterior passagem pela equipa principal e utilizava na equipa B dos encarnados? Do outro lado, não restam dúvidas acerca do híbrido entre o 4x3x3 e o 4x4x2 que Conceição vai adotar. Possivelmente surgirão algumas nuances no aspeto defensivo – e depois na capacidade de transição –, derivadas do comportamento da primeira linha de pressão sem Evanilson, da forma como, sem ele e Díaz, a equipa fica mais dependente das receções entre linhas de Corona, Taremi e Fábio Vieira e de como isso diminui um pouco a capacidade de Otávio e Vitinha para promover passes de rotura. Porque os mesmos esquemas são esquemas diferentes com jogadores diferentes. E é isso que deve pensar-se quando se tenta entrar na cabeça de Veríssimo: pode haver recurso a elementos estabilizadores, que sirvam para segurar as bases na ideia de um treinador, mas não há transferência de um mesmo esquema tático para planteis diferentes, com jogadores diferentes.
Se estava convencido de que, sendo Jesus o treinador, o Benfica ia voltar a entrar com a linha de três atrás – as ausências de Otamendi e Grimaldo já iam baralhar suficientemente as coisas para o treinador se meter a baralhar mais ainda... –, agora que a baralhação foi assumida com a troca de técnico já admito que se troque também de sistema, de modelo defensivo, sem as referências individuais de marcação que Jesus recuperou precisamente depois de perder a Supertaça para o FC Porto de Conceição, e de forma de atacar. E se me parece que o plantel do Benfica não foi construído para jogar em 4x2x3x1, ele é tão vasto que o maior problema da mudança de esquema não será encontrar gente para preencher as vagas na organização escolhida, mas sim decidir o que fazer com quem de repente deixa de ser útil e percebe que não cabe, como as paletes de pontas-de-lança e de extremos com tendência para explorar o espaço interior.
Tanto Veríssimo como Lage, antes dele, usavam um lateral mais ofensivo (Grimaldo) e outro mais estável (André Almeida) e isso pode ser replicado hoje com André Almeida e Gilberto ou Lázaro. Tanto um como o outro jogavam com um médio de trabalho ao lado de Weigl (Gabriel) e libertavam um 10 mais criativo (Chiquinho) nas costas do ponta-de-lança – e isso pode ser replicado com Meité ou Paulo Bernardo e com João Mário. Tanto um como o outro usavam um extremo veloz (Cervi) e outro mais dado a diagonais para dentro (Pizzi) e isso também pode ser replicado com Rafa (ainda que tirar Rafa do meio possa reduzir a capacidade atacante do Benfica) e o mesmo Pizzi (ou até Everton). A grande questão, aqui, é a de saber se Veríssimo quer assumir a mudança sem ter tido tempo para a trabalhar. Ou se prefere manter-se refém das ideias do treinador anterior, protegendo as suas para poder aplicá-las mais tarde.
Sei que vem fora de tom, mas há uma pergunta que não vejo ninguém fazer (nem jornalistas, nem comentadores também porque o interlocutor se escudou num silêncio clerical): Rui Costa gostava mesmo de JJ? Concordou com a opção tomada por LFV de resgatar ao Flamengo o treinador português?
Porquê tudo isto? Logo à noite, nos céus do Dragão vão pairar duas sombras: LFV e JJ. Será o Benfica capaz de dar cabo dessas nuvens negras?
O jogo, como costuma dizer António Tadeia, é um organismo vivo. Por mais táticas será a cabeça dos jogadores que ditará o desfecho. E quem as tiver mais limpas ganhará.