O campo dos ‘bots’
O futebol, como tudo o que é controverso, é campo fértil para ‘bots’ que desumanizam a discussão e invertem o pesadelo orwelliano do 1984 em nome de uma ‘democracia’ ferida de morte pela tecnologia.
Palavras: 1476. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Vivemos um fim-de-semana típico no futebol português, um daqueles em que a esmagadora maioria dos adeptos tem razão para se sentir ao mesmo tempo feliz e indignada. Estão felizes porque os três grandes ganharam – e já se sabe que 95 por cento dos seguidores de futebol em Portugal puxam por um dos três maiores clubes. E estão indignados porque têm a certeza absoluta de que os outros dois só ganharam os seus jogos por causa de uma cabala que junta os árbitros e os jornalistas para os levarem ao colo até ao título ou para os não deixarem cair em momentos de fragilidade. E isto não seria grave, seria até pitoresco, se as redes sociais e a automação tecnológica que elas favorecem não nos enchessem o dia-a-dia de especialistas na disseminação do ódio, de gente que faz com que qualquer ida ao Twitter ou ao Facebook seja uma aventura a pedir acompanhamento parental até a adultos responsáveis. Alguns deles até são humanos, mas o papel a que se prestam, seja a troco de pagamento ou só de uma boa perspetiva de negócio, dada pelos algoritmos, leva-me a olhar para todos da mesma maneira. São ‘bots’, o diminutivo de robots. E, numa inversão do 1984 orwelliano que acaba por atingir os mesmos fins, cada vez mais as Ligas, como tudo o que gera discórdia, da saúde à edução ou à imigração, é um campo fértil para os ‘bots’.
É curioso como redes que em si se chamam “sociais” e que têm o condão de aproximar mais as pessoas umas das outras e de popularizar o acesso à divulgação de notícias e opiniões vão acabar a desumanizar-nos ainda mais. Estou muito grato às redes sociais, porque sem elas e o seu megafone já não estaria no ativo senão na TV há dez anos – e a palavra escrita é, para mim, fundamental. Mas foi por ter noção desta desumanização progressiva, pela constatação de que 200 perfis falsos e sem cara, ensinados a repetir meia-dúzia de palavras-chave capazes de desencadear em nós irritação, valem mais do que uma conversa equilibrada com alguém que sabemos quem é e a quem, por isso, podemos pedir satisfações, apresentar contraditório, que deixei o modelo marcado pela escala e me mudei para o formato de newsletter. Aqui, eu garanto que quem subscrever, nem que seja a versão gratuita, recebe pelo menos o primeiro parágrafo de cada texto que escrevo. Tudo sem ser influenciado por algoritmos desenhados para desencadear em nós as descargas de dopamina que inevitavelmente se seguem a cada segundo de indignação. É por isso também que cada vez fomento menos interações nas redes sociais – mas respondo a comentários aqui, no Substack – ou que reagi com dúvidas à medida que os ingleses anunciaram esta época, de que os árbitros iriam passar a ter de declarar o seu clube de coração.
“Quem não deve não teme”, alegam. É uma má ideia, porque no campo desumano dos ‘bots’, um campo em que, estranhamente, depois se procura a motivação por trás de qualquer erro de decisão – e não há nada mais humano do que uma motivação –, tudo é aproveitável para infernizar a vida de quem tem um pouco de visibilidade, seja árbitro, jornalista ou comentador. Se errou a favor foi porque é doente do clube, se errou contra foi porque compensou em excesso o facto de ser doente do clube. E se não é daquele clube nem do outro que ali está em campo ou dos rivais de um ou do outro na classificação é porque foi pago, subornado. A única forma sã de lidar com o tema é fechar-lhe na cara a porta da decência, porque qualquer concessão vai dar-lhe campo para crescer, vai ser pasto para os ‘bots’ que não travam ante nenhum sinal de perigo, porque, meus amigos, o perigo é a profissão deles. Reparem como neste fim-de-semana vimos de tudo. Vimos ‘gente’ a postar o vídeo da repetição do lance que motivou o penalti a favor do Sporting em Arouca a andar de trás para a frente, para dar a ideia de que a bola tinha resvalado da coxa para o braço de Fukui e não ao contrário, prefigurando um caso de ressalto inesperado. Vimos ‘gente’ a amputar o vídeo do primeiro golo do Benfica dos três toques de bola de jogadores do Santa Clara que ocorreram entre a falta de Otamendi sobre Safira e o passe de Kökçü para o desvio de Aktürcoglu, assim tornando incompreensível que o VAR não tivesse chamado o árbitro de campo para rever a jogada. Vimos ‘gente’ a editar o vídeo do lance do penalti a favor do FC Porto, colocando-o apenas a partir do exato ‘frame’ em que Moreno já tinha largado a camisola de Galeno, de maneira que só se visse o extremo portista a cair sem interferência de qualquer adversário.
Não se iludam: não há inocentes. Se não são os clubes a patrocinar esta criação de narrativas com exércitos próprios de ‘bots’ é a iniciativa privada a seguir esse caminho da discórdia em nome da perspetiva de negócio – que seguidores, likes, partilhas ou retweets são isso mesmo, são negócio. Os próprios órgãos de comunicação social preferem títulos capazes de estimular essa discórdia, por mais artificial que ela seja, pois temem que se não for assim acabarão por ser engolidos pelos ‘bots’ e tornados insignificantes nesta versão 2.0 do paradigma do Grande Irmão. Ainda que não haja maneira de entrar no Twitter sem ver dezenas de pensamentos de Elon Musk, não há um ‘Grande Irmão’ a vigiar-nos a todos numa perspetiva repressiva. Mas há milhares de ‘pequenos manos’ que se dizem advogados da liberdade mas mais não são do que gurus da libertinagem irresponsável, que nos vencem pelos números, tão avassaladora é a sua produção. E quanto a isto a verdade é que não há muito que possamos fazer. Não creio em proibições – nem elas são possíveis, seja do ponto de vista legal ou técnico. Acredito no crescimento da responsabilidade dos protagonistas, nas novas lideranças dos três grandes e na sua noção de que a polémica, a médio e longo prazo, lhes destrói a galinha dos ovos de ouro, porque afastará os potenciais clientes da indústria que eles nos querem vender. Ou alguém paga TV por assinatura para ver um desporto que julga viciado? E acredito também na ressignificação do papel do jornalismo, com a separação total e irrevogável entre estes dois mundos, num jornalismo que seja capaz de viver sem pensar nos algoritmos – e de aceitar a natural quebra de relevância em termos de números, para o que naturalmente terá primeiro de reduzir (ainda mais) os custos de produção. É por isso – e não por gostar de viver como um eremita – que trabalho sozinho.
Parece não ter nada a ver, mas se calhar até tem: no sábado à tarde fui ao cinema, ver o Sigmund Freud de Anthony Hopkins. “A última sessão de Freud” não é um filme extraordinário mas apresenta-nos uma conversa muito interessante sobre questões como o egoísmo ou a natureza humana ante o poder da religião. Não tem luzes a acender e a apagar, perseguições automóveis em alta velocidade, sexo – a não ser implícito –, violência ou outros momentos de hiper-estimulação dos sentidos. Passa-se 95 por cento do tempo numa sala, com dois atores, a ponto de quase parecer uma peça de teatro. Está numa sala pequena, nas Amoreiras, mas à hora a que fui, a meio da tarde, a sala estava quase cheia. Esse é o caminho que todos teremos de fazer na ressignificação do futebol, percebendo que nas salas ao lado haveria muito mais gente a anestesiar-se com estímulos tão mais imediatos quanto menos relevantes, mas aceitando isso como parte da realidade deste 1984 dois-ponto-zero. Até por isso, este fim-de-semana foi bom. Lembrou-nos a todos os que queremos ver dos perigos que corremos se nos desviarmos nem que seja um milímetro do caminho.
PS – Se chegou ao fim deste texto à espera que eu aqui deixasse a minha opinião sobre as controvérsias de arbitragem, seja para validar a sua ou para se revoltar e passar a ter a certeza de que estou vendido se por acaso vimos os lances de forma diferente, lamento. Este Último Passe não é sobre isso. Mas direi o que penso sobre todos os lances no Futebol de Verdade, que esta semana, por questões técnicas, não foi para o ar ontem à noite e voltará ao horário tradicional. É já às 12h30 e se só os subscritores Premium podem participar no direto, todos os outros poderão ver o programa assim que ele terminar.
A culpa não é das redes sociais, as redes sociais apenas deram vós a toda a gente, o problema é que não se sabia o que estava dentro da cabeças das pessoas antes das redes sociais, mas muito do que nos queixamos já acontecia antes das redes sociais e antes dos bots. Eu deixei as redes sociais por causa do ambiente de intolerância politica e social que se criou nas redes sociais, onde discordar é perigoso e o stresse que acompanha essas irritações é prejudicial à nossa saúde. E sim, eu tinha redes sociais e era dos que comentava noticias, opiniões, etc.
Este tema fez de mim a ovelha negra do Discord e um alvo a abater de imediato, mas mantenho a mesma opinião, nestes casos, há algo que eu digo há muito tempo mas que acaba por ser mal interpretado, porque ou temos o discurso incendiário ou temos de nos fazer de sonsos, porque ou estamos de um lado ou de outro e como sempre digo, muitas vezes a verdade ou a solução está no meio: Há uma grande quota parte de culpa da arbitragem em Portugal no clima conspirativo. Há erros crassos que antes eram justificados como sendo faltas de tv, mas que na verdade era apenas erros graves e que agora são justificados com "acontece", mas a realidade é que com VAR a possibilidade de erro real (e por vezes demoram uma eternidade a avaliar lances de fácil interpretação), é diminuta. Não se entende como um jogador agride outro, por exemplo, e quem está no VAR não intervenha. E aí deveria existir a punição do árbitro que está no VAR e não interveio ou do árbitro que avisado comete um erro inaceitável e ainda temos uma arrogância da parte da arbitragem de nunca assumir os erros e ainda fazer comparações sonsas com o jogador que falha um penalti. Mais, o próprio jogador ou treinador que se queixe é imediatamente punido e a indignação é seletiva e já foi da gritaria na imprensa, à greve, mas foi sempre contra o mesmo clube apenas. É que por exemplo em Inglaterra, há uma lei da rolha muito mais forte, por vezes politica e a tocar o absurdo, mas quando se trata de arbitragem, o árbitro também é punido e há um assumir de responsabilidades em vez de arrogância.
Depois falta a parte do "parecer sério" que muitos esquecem, não só naquela dualidade de critérios e falta de punição e de assumir de responsabilidades, mas também quando foi a questão das prendas. É que água não e prenda, é um bem essencial e os árbitros não podem nunca receber prendas, sejam elas quais forem, sejam camisolas, sejam jantares e quando ouve a questão dos jantares, a resposta não devia ser a que tivemos, mas sim de assumir que não poderia acontecer e aconselhar a rejeitar prendas. Imaginemos um juiz a receber uma prenda do réu ou do autor, como se fosse o Preço Certo...
Concordo com o texto, mas não pode concordar que o árbitro seja vitima, ele é sim também Réu, junto como todos os outros intervenientes. Felizmente na TV mudaram, exceto a CMTV, mas agora há um novo que parece ter voltado atrás no tempo, mas se o árbitros assumissem responsabilidades, os gritos seriam vistos apenas como absurdo e só os bots e meia dúzia de adeptos mais fanáticos, daria ouvidos.
Para sermos justos, fruto da mudança do lideranças nos três principais clubes, a procura pela polémica permanente vem hoje mais da comunicação social, com os programas intermináveis de comentário, do que das referidas lideranças. A comunicação oficial dos clubes está hoje muito mais sã e positiva do que até 2020, diria.