No limiar da prostituição
O que o Al Hilal quer fazer com Mbappé é transformar o atacante francês no primeiro acompanhante de luxo do futebol mundial. É por isso que ele deve recusar.
Quis o acaso que o dia escolhido pelo PIF, o Fundo Soberano no reino da Arábia Saudita, para apresentar ao Paris Saint-Germain uma proposta de 300 milhões de euros para levar o francês Kylian Mbappé para o Al Hilal, um dos cinco clubes que “patrocina”, tenha sido o dia da morte, em Espanha, aos 69 anos, de Trevor Francis, o avançado inglês que, em Fevereiro de 1979, se mudou do Birmingham City para o Nottingham Forest, quebrando pela primeira vez a barreira do milhão de libras nas transferências de futebolistas. Quando Brian Clough, um génio à frente do seu tempo, pagou o que pagou por Francis, estava a pagar sucesso – e o jogador devolveu esse valor com juros quatro meses depois, marcando o golo da vitória na final da Taça dos Campeões Europeus, contra o Malmö FF. Quanto é que vale uma Taça dos Campeões? Mais: quanto valem duas? Porque o que o Forest ganhou foram duas, seguidas, com três golos de Francis nos quartos e nas meias-finais da edição de 1980, ao Dínamo Berlim e ao Ajax. O que é que um clube paga quando contrata um jogador a outro clube? Pois depende. Pode pagar muitas coisas. Pode pagar sucesso desportivo, como foi o caso do Forest com Francis – ainda por cima vendido em 1981 ao Manchester City por 1,3 milhões, com quase 30 por cento de lucro. Pode procurar mais-valias financeiras, como é frequentemente o caso com os clubes portugueses, por exemplo quando vão buscar jovens futebolistas à América do Sul. Ou pode querer uma simples afirmação de estatuto, uma operação de relações públicas, aproveitando um contexto deveras complicado, como parece ser o caso do Al Hilal neste dossier Mbappé – e em certa medida já foi o caso do PSG quando contratou o jogador ao AS Mónaco, ainda que nesse caso mantendo-o a jogar a Liga Francesa. Os sauditas passaram por cima das relações tensas que têm com o Qatar, dono do PSG, e chegaram-se à frente com 300 milhões de euros. Acrescentaram um salário de 200 milhões por um ano para o jogador, o que, tendo em conta que, entre ordenado e prémios, ele recebe mais de 180 milhões em Paris, pode até parecer irrelevante, mas não o é, pois além de ele em Riade não ter a carga fiscal francesa, aos 200 milhões garantidos pode depois somar mais uns 500 milhões em direitos de imagem, que o clube também lhe cederia. Por fim, o Al Hilal nem se importa de fazer contrato por apenas um ano, deixando Mbappé sair a custo zero e cumprir o sonho de ir jogar para o Real Madrid em 2024, porque sabe que essa é a única forma de poder deitar-lhe a unha. Se este é um valor demasiado alto a pagar pela revalidação do título saudita ou mesmo por uma Liga dos Campeões Asiáticos e se fica claro que não há intenção do Al Hilal recuperar o dinheiro numa futura transferência, o que que querem os sauditas, então? É simples: tal como há seis anos, quando contratou o jogador, o PSG queria mostrar que mandava no mercado francês a seu bel-prazer, os sauditas querem agora mostrar que contam no mercado mundial, que os seus alvos não são só veteranos em quem mais ninguém pega, que também conseguem chegar aos jogadores mais apetecíveis – e nada como o mais desejado de todos para o provar. Sucede que os valores colocados em cima da mesa são de tal forma absurdos que dão uma dimensão completamente diferente ao negócio do futebol. Não é de agora que o futebol é acerca do dinheiro – falei-vos de Francis mas podia ter ido muito mais atrás, aos primeiros profissionais pagos para jogar, ainda no século XIX. Mas quando um dos intervenientes arrasa todas as noções para mostrar um ponto, o jogo transpõe a barreira entre negócio e prostituição. O que o PIF quer fazer com o Al Hilal é como um pagar para o filho poder levar a Scarlett Johansson ao baile de finalistas do secundário, é transformar Mbappé no primeiro acompanhante de luxo do futebol mundial. É por isso que a responsabilidade do jogador é recusar.
Bosman e herdeiros. O que está em causa neste negócio é, em grande parte, a eficácia da sentença Bosman, marca fundamental na história do futebol moderno. Recuemos 30 anos no tempo, à altura em que, terminados os contratos, os jogadores não eram livres para assinar por outros clubes, ficando nas mãos do ex-empregador, que teria de ser ressarcido pelas suas saídas. O futebol não é uma atividade como outra qualquer, porque nele se pagam somas milionárias para contratar profissionais a clubes ou empresas concorrentes – ou porque não prevê contratos sem termo –, mas desde a sentença Bosman que há clareza nas relações entre clubes e futebolistas. Os primeiros, quando pagam uma transferência, sabem que o valor que investem deve ser amortizado nos anos de contrato que fazem com o “ativo”, chamemos-lhe assim. E os segundos, quando assinam um contrato, sabem que no final são livres de escolher outro empregador – mas também que correm o risco de ficar sem emprego se não aproveitam um momento bom para prolongar os seus vínculos. Há vantagens e desvantagens dos dois lados em todas as situações, mas a coisa funciona, sobretudo porque há mecanismos legais para evitar o abuso de posição dominante. Se assim não fosse, os clubes poderiam fazer aquilo que o Paris Saint-Germain está a fazer com Mbappé, que é ostracizar o jogador que, em último ano de contrato, não quer renovar, mantê-lo a trabalhar à parte e sem qualquer perspetiva de poder vir a jogar para o pressionar a assinar novo vínculo, evitando perder o valor investido na sua transferência. Ora isto é tão ilegal que se, no início de Setembro a situação se mantiver, Mbappé terá razão para rescindir e assinar livremente por outro clube já – e não apenas em 2024. Não se coloca, portanto, a questão da escolha exclusiva entre passar um ano a treinar à parte e a ver os colegas jogar ou a fazer desafios irrelevantes no campeonato saudita. Não. Mbappé é que tem de decidir pelo que quer ser recordado.
Os áudios do VAR. O Conselho de Arbitragem da FPF revelou ontem que vamos começar a ter acesso aos áudios das conversas entre árbitros de campo e VAR “em todos os lances avaliados no ecrã disponível no relvado” nos desafios apitados “por árbitros e assistentes da categoria C1”. Vai ser um festim para os analistas de frames dos serões televisivos, que a partir de agora se entreterão não com aquilo que os árbitros disseram mas com aquilo que acham que eles queriam dizer – razão pela qual eu preferiria sempre a divulgação em direto, retirando às doses de degradação diária que nos servem alguma carga de novidade – mas é um bom princípio. Mais uns anos e talvez lá cheguemos.
Muito interessante a análise sobre a situação do Mbappé. Tenho algumas dúvidas sobre a possibilidade de ele ter o direito de rescindir o contrato já em Setembro. Do ponto de vista juridico se por um lado é claro que um clube não pode ostracizar um jogador como forma de pressão para que este renove o contrato, também não é menos verdade que o jogador não tem o direito a jogar as partidas oficiais/amigáveis (a não ser que esse direito esteja definido no contrato de trabalho enter o PSG e o Mbappé). A FIFA determina que o jogador poderá rescindir se não participar em pelo menos 10% das partidas oficiais (excluindo claro as situações em que essa não participação se deveu por, exemplo, a lesão ou castigo disciplinar). Porém, esta possibilidade só pode ser executada nos quinze dias posteriores ao ultimo jogo oficial do clube empregador.
No entanto, considerando que está em causa um litigio entre um jogador francês e um clube francês a questão muito possivelemente terá de ser decidida pelas autoridade francesas e não pela FIFA (se bem que os regulamente franceses devem ser semelhantes ao da FIFA), sem prejuizo do contrato de trabalho estipular algo distinto.
Julgo que vai ser a maior novela de Verão dos últimos anos (e a ver vamos ver se não irá continuar bem para lá do Verão)