Dores de crescimento
A seleção feminina de Portugal está no ponto em que a masculina esteve em meados da década de 80, quando celebrávamos fases finais. Pode, felizmente, aprender com o que já foi feito pelos homens.
Vivi enquanto miúdo e adepto de futebol a frustração de Portugal nunca se qualificar para as fases finais das grandes competições. Depois, numa segunda etapa, já adolescente, em 1984 e 1986, experimentei a euforia de ver a seleção chegar lá para um brilharete francês e uma desilusão mexicana. E numa terceira, aquela em que já vivemos desde 2000, todos passámos à relativa indiferença perante cada apuramento, uma indiferença própria de quem acha que a qualificação é uma obrigação e nunca uma proeza digna de registo. A seleção feminina está a chegar à segunda etapa, a da euforia pelas presenças nas fases finais, à qual corresponde muito naturalmente uma escassez no plano de jogo que é própria de quem dá os primeiros passos. Nenhum bebé corre quando aprende a andar – antes procura dar passos seguros, até porque não sabe que isso pode impedi-lo de atingir objetivos. O que se viu da seleção nacional na estreia no Mundial, ontem de manhã, contra os Países Baixos, foi excesso de timidez numa primeira parte com a equipa demasiado amarrada. Meio século depois, poderíamos recuperar a famosa frase de José Maria Pedroto, que na década de 70 avisava que faltavam 30 metros ao futebol nacional, quando compreendemos que pela frente estavam as neerlandesas vice-campeãs do Mundo mas que com um pouco mais de ambição talvez fosse possível impedir que a qualificação tivesse passado já a uma quimera quase impossível de atingir. Tal como nos homens de há 40 ou 50 anos, ontem, em Dundedin, a questão não foi tanto de qualidade das jogadores ou dos treinadores – foi sobretudo uma questão mental, de equipas que preferiam jogar à apanhada sem sair dos quatro ou cinco metros frente ao coito, para depois não serem surpreendidas. E se isso se entenderia se depois fossemos uma equipa capaz de resistir nas fases táticas, já se torna mais próximo do inexplicável quando se vê que acabamos sempre por ceder nas bolas paradas: ontem, perdemos com os Países Baixos com um golo de canto, como de canto e livre lateral nasceram três dos quatro golos que sofremos nos 15 minutos iniciais de cada um dos dois primeiros jogos do último Europeu, contra a Suíça e os mesmos Países Baixos. Posso até estar a ser injusto, porque não tenho o mínimo de conhecimento sobre as caraterísticas, forças e debilidades daquelas jogadoras nem sei como é que elas têm treinado, mas não creio que o sucesso de Portugal possa passar pelo sacrifício de Ana Borges a uma posição de central pela direita, que foi o que ela teve de ser na primeira parte, e muito menos pela manutenção de Kika Nazareth no banco. A primeira tem muita qualidade de decisão e consegue levar a equipa para mais perto de Jessica e de Diana Silva, duas avançadas ontem demasiado baixas no campo para se aproximarem do resto da equipa. A segunda acrescenta criatividade e, acima de tudo, repentismo e velocidade de pensamento que será sempre a melhor resposta ao que Francisco Neto no final apontou – e bem... – como maior defeito da equipa na estreia: a incapacidade para sair das zonas de pressão.
A vida é como os interruptores. A frase é de um qualquer programa do Herman José de há umas décadas e, como faz todo o sentido, tornou-se lugar-comum. Na vida, umas vezes está-se para cima, outras para baixo. No futebol de alto nível, o talento é condição indispensável, mas não garantia de sucesso, porque depois há uma série de detalhes, de pequenos nadas, a fazer a distinção entre uma carreira de topo e o relativo anonimato dos que quase chegaram lá. Lembrei-me disso a ver o jogo de Romário Baró, a meio-campo do FC Porto, mas já o tinha pensado quando vi Eduardo Quaresma a preencher o espaço à direita da defesa do Sporting, há dias. Os dois têm tudo. Ou quase tudo. Baró tem técnica, visão, aquele centro de gravidade baixo que lhe permite fazer mudanças de trajetória capazes de partir os adversários e ainda uma explosividade que demonstra em mudanças de velocidade que os deixam tantas vezes por terra. Quaresma tem velocidade, facilidade em condução e capacidade técnica que fazem dele um encaixe perfeito na linha mais atrasada de uma equipa de Rúben Amorim. Os dois tiveram oportunidades, mas se estão muito longe de serem indiscutíveis nos seus clubes, ainda fracassaram nos empréstimos a que foram submetidos. Baró fez 34 jogos pelo FC Porto em 2019/20 e 2020/21, quase tantos como os 41 que realizou nas duas épocas seguintes, nos plantéis menos competitivos do Estoril e do Casa Pia, onde nem sempre foi titular, dando a sensação de que se foi mentalmente abaixo com a “despromoção”. Quaresma foi nove vezes titular nas dez últimas jornadas de 2019/20, as que coincidiram com a chegada de Amorim a Alvalade, mas nas três temporadas seguintes jogou três vezes pelo Sporting, 30 no CD Tondela e quatro no TSG Hoffenheim, deixando a ideia de que tem dificuldades na concentração para a competição. Neste Verão, alguém está a tentar ligar-lhes outra vez o interruptor. Mas são eles quem tem de acender a luz.
Acreditar no futuro. A Arábia Saudita continua a colocar dilemas que são mais do que morais a inúmeros protagonistas do futebol mundial. Há quem diga sim aos milhões do rei e, embora me custe ver a legitimação pelo desporto de um regime despótico e desrespeitador dos mais básicos direitos humanos, não creio que esteja no direito de dar lições de moral a quem vai para lá jogar ou trabalhar. Mesmo tratando-se de quem já amealhou o suficiente para toda a vida, cada um sabe de si e do dinheiro de que precisa para ser feliz... Uma coisa, no entanto, posso dizer: deve ser preciso estar muito necessitado para abraçar o fim de uma carreira que pode ser tão recompensadora como a de futebolista ou treinador quando ainda se está no auge. Marco Silva não o fez. Podia ter ido ganhar 40 milhões de euros em dois anos enterrado no Al-Ahly, mas preferiu ficar no Fulham, onde um mau início de época até pode vir a significar que esteja desempregado daqui por uns meses. E não creio que o tenha feito por idealismo. É mais porque acredita que tem futuro – o que quer que isto queira dizer sobre quem toma a decisão em sentido inverso.