Laboratórios Martínez
O maior foco de preocupação do jogo com a Geórgia foi ter visto Roberto Martínez voltar a um plano que causa desconforto a muitos jogadores e pensar que ele pode sentir-se tentado a repeti-lo.
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Perder com a Geórgia, como Portugal perdeu ontem (0-2), no encerramento da fase de grupos do Euro 2024, é mau. É péssimo, mesmo, pois estamos a falar de uma seleção que, além das vitórias contra Chipre e o Luxemburgo, só tinha conseguido mais três empates em dez jogos de qualificação. Ainda assim, há uma razão acima de todas as outras a fazer com que a derrota de ontem seja má. Perder aquele jogo foi mau porque em vez de uma Hungria com algumas armas ofensivas, mas permeável atrás, vamos encontrar a Eslovénia, que com a Dinamarca e a Áustria se tem mostrado uma das equipas defensivamente mais bem organizadas de toda a competição – mas isso até foi pior para os húngaros, que após dois dias à espera acabaram por seguir para casa, eliminados. Perder aquele jogo foi mau também porque a derrota pode vir abalar a moral dos jogadores, por mais que eles tenham vindo proclamar o contrário, mas fá-lo-á sobretudo aos que estiveram em campo – e à exceção de Diogo Costa, Ronaldo e talvez Palhinha, não serão esses os que vão começar a partida que se segue. Nos oitavos voltarão os titulares e o que o desaire de ontem nos disse foi sobretudo que essa ideia de que Portugal tinha duas equipas capazes de discutir o torneio era um exagero nascido da habitual euforia lusa. Mas perder o jogo de ontem foi mau sobretudo devido às razões que levaram à derrota e à insistência de Roberto Martínez num plano de jogo que tem tudo para falhar, por atribuir aos jogadores missões que eles têm muitas dificuldades em cumprir. O problema não são os três defesas-centrais, como não são os laterais por dentro – quando muito será a acumulação das duas coisas. O problema não é a lógica de contramovimentos na frente. Tudo isso, já vimos noutros contextos que pode funcionar. O problema é querer impor à força, porque estão lá descritas no manual trazido pela equipa técnica para este Europeu, missões que tiram parte dos jogadores da seleção das zonas em que eles fazem a diferença. Já vos tinha escrito aqui sobre desconforto, após a sofrida vitória sobre a República Checa, na primeira jornada desta fase de grupos. Pois bem: ontem, esse desconforto cresceu e não houve assomo de orgulho final que impedisse o desaire. E o desconforto cresceu não só porque os jogadores escalados eram os suplentes e não os titulares – menos qualidade, portanto, bem à vista na forma como João Cancelo ou Diogo Dalot desempenham a missão de lateral transformado em segundo médio ou até segundo avançado –, como porque se manteve o erro de base e ainda subimos o grau de dificuldade com a junção de Palhinha a uma tripla de centrais. A equipa portuguesa ontem partia do 3x4x3 e atacava, como sempre, em 3x2x5. Mas o desdobramento atacante levava muita gente para zonas incómodas. Como tinha os três centrais atrás, em vez de baixar para início de construção, Palhinha era obrigado a entrar em ações e zonas de criação, a buscar as entrelinhas. E, mais a mais contra uma equipa que mantinha o bloco baixo, se defendia com linhas muito próximas, uma de cinco e outra de três, logo à saída da sua área, essa era uma missão para a qual faltavam argumentos ao médio do Fulham. O cinco da frente, depois, colocava Conceição à direita e Neto à esquerda. Trata-se de dois jogadores sobretudo individuais, menos esclarecidos nos processos coletivos, ainda mais forçados a buscar a solução solitária porque eram quase sempre deixados em um para dois ou um para três – um dos problemas apresentados pelo lateral interior no esquema de três centrais é a maior acumulação de gente por dentro, gente que depois faltava nas duas faixas. Por fim, sempre que Ronaldo saía da posição de ponta-de-lança, quem devia aparecer para a ocupar eram João Félix – que ainda era o único que ligava jogo mais atrás e por isso lá fazia falta – ou, pasme-se, Dalot, que a metamorfose ofensiva da equipa transformava de ala/lateral direito em segundo ponta-de-lança. Estes problemas já tinham ficado à vista de todos logo no primeiro jogo, com a República Checa, mas ainda assim Roberto Martínez voltou ao plano. E é esse o maior foco de preocupação saído da derrota de ontem: é que nada garante que não seja essa a forma que o selecionador escolha para enfrentar os desafios que se seguem.
O teste da Irlanda. E mais preocupante é que, no final do jogo de ontem, quando questionado pelo Manuel Fernandes Silva acerca da bondade da aplicação do plano a um adversário como a Geórgia, Martínez tenha dito que a equipa repetiu o que tinha feito no teste contra a Irlanda, em Aveiro, e que aí tinha corrido bem. E este é um dos casos em que é pena as conferências de imprensa não nos darem direito a contra-perguntas. Porque não teve nada que ver. Contra a Irlanda, é certo, Portugal também jogou com três centrais, até aproximados aos de ontem, apenas com Pepe em vez de Danilo, mas depois tinha dois médios de outro perfil – já estava João Neves mas juntou-se-lhe Bruno Fernandes, cujas caraterísticas não são parecidas com as de Palhinha – e dispôs o ataque de forma radicalmente diferente. Se bem se lembram, foi o jogo em que Ronaldo foi muito elogiado por sair da posição e aparecer a ligar com a equipa, na meia-direita, o que até funcionou, porque nesse dia Portugal surgiu com o ataque em um mais dois, em vez do habitual dois mais um. Contra a Irlanda, Félix jogou a partir do corredor central – o que também lhe convém mais – atrás de dois atacantes, Ronaldo vindo da meia-direita para o meio e Leão da meia-esquerda para o meio. Não é o que mais convém a Leão, que precisa de sair da linha, mas para lhe dar essa amplitude lá estava Cancelo como lateral/ala interior a partir da esquerda. O que também não é o melhor para ele, mas que ele sempre faz melhor do que Dalot. A questão é que dessa forma, pelo menos, a seleção tinha soluções nas entrelinhas e presença na área. Ontem não teve uma coisa nem a outra.
O peso dos erros. Claro que o jogo de ontem podia ter sido outro não tivesse a Geórgia feito golo logo no início. Há muito mérito de Mikautadze, na recuperação de bola e no tempo em que faz o passe para Kvaratshkelia, como o há do próprio Kvaratshkelia na velocidade com que atacou o espaço e na finalização impecável, mas o lance não é dissociável dos erros cometidos por Portugal. Primeiro e acima de todos, de António Silva, cuja exibição desastrada começou ali, num passe interior feito sem olhar para onde não havia colegas, mas continuou depois, no penalti que cometeu por abordar um lance de forma demasiado temerária ou na quantidade de bolas transviadas que foi acumulando até ser substituído. Mas do lance não deve apagar-se a forma como Danilo fez sempre o contrário daquilo que tinha de fazer: estava muito atrás em posse, aumentando o espaço de condução disponível para Mikautadze e, depois, ficou a meio caminho entre a contenção ao portador, algo para o que já lá estava Inácio, e a dobra a António Silva, não fazendo uma coisa nem a outra. A derrota de ontem também se explica por aí, pelos erros de António Silva e Danilo, pela boa exibição do guarda-redes georgiano, Mamardashvili, ou pela perda de uma série de situações de golo na frente. Além de um penalti do tamanho do Mundo que o árbitro e o VAR escolheram ignorar, por agarrão evidente na camisola de Ronaldo.
A gestão de Ronaldo. Não tive, à partida, nada contra a titularidade de Ronaldo ontem. O CR7 até jogou bem contra a Turquia, pelo que se entende que tenha voltado a estar no onze com a Geórgia. Mas as explicações de Roberto Martínez para justificar a presença do capitão entre os titulares fazem tanto sentido – ou tão pouco... – como as que já deu para a convocatória. O selecionador voltou a incorrer numa contradição, ao dizer nuns casos que há jogadores que precisam de parar porque têm muitos minutos e, no de Ronaldo, que é dos que mais minutos fez em toda a época, que ele tem de continuar a jogar para não perder ritmo. E é o facto de a justificação ser tão falha de sentido que lança sobre a gestão de Ronaldo o manto de suspeita que não faz nenhuma falta à equipa. Visto de fora, e naturalmente sujeito a erros, aquilo que parece é que Ronaldo jogou porque queria muito fazer o golo que lhe permita o recorde de marcar em seis Europeus consecutivos. E, por muito que seja um objetivo admirável – e é-o – esse não pode nunca ser o objetivo de um coletivo.
Entrelinhas
Cristiano Ronaldo is raging – at referees, his luck and maybe time itself, artigo de Oliver Kay, no The Athletic, sobre o Europeu do capitão português.
The remarkable story of Georgia at Euro 2024: “We just made history”, artigo de Nick Miller, no The Athletic, acerca da saga georgiana neste Europeu.
L’homme au masque d’enfer, artigo de Damien Degorre sobre o processo de adaptação de Mbappé à máscara que usou no jogo com a Polónia.
Francia está raquítica de gol y fútbol, análise de Ladislao J. Moñino, no El País, ao futebol que vem sendo apresentado pelos franceses.
Belgium must face up to their own terrace mutiny – and an unwanted meeting with France, é um ponto da situação do campo belga, feito por Daniel Taylor, no The Athletic.
Italia hai svoltato, análise de Cesare Prandelli à evolução da seleção italiana, na Gazzetta dello Sport
España también defiende como una família, artigo de Juan I. Irigoyen, no El País, acerca do coletivo da seleção espanhola.
Beer cups and criticism – being England manager really is the impossible job, artigo de Jason Burt, no Telegraph, a propósito da onda de críticas em torno de Southgate.
Saviour complex comes for Southgate as joyless England grasp for identity, artigo de Jonathan Liew, no The Guardian, a avaliar o ponto a que a liderança de Southgate levou a Inglaterra.
Black shirts and banned flags: ultras push politics at Euro 2024, artigo de Rory Smith e Christopher F. Shuetze, no The New York Times, partindo da claque pró-Orban da Hungria para chegar às manifestações nacionalistas de vários adeptos balcânicos.
Discordo de dois pontos: 1) Portugal tem duas equipas capazes de discutir o torneio, o problema é que não tem um treinador com uma ideia de jogo, a não ser os laterais interiores, o ataque em 3-2-5 e o caos e anarquia, constantemente a mudar o plano de jogo. 2) Contra a Turquia Ronaldo só apareceu na desmarcação e passe fácil para o Bruno Fernandes, de resto passou ao lado do jogo, como tem passado por todo o Europeu.
Quanto a António Silva, os penaltis temerários são, infelizmente, uma assinatura pessoal, que já tinha acontecido, por exemplo, no célebre jogo do Bessa em que "a culpa foi do Vlachodimos". António Silva é bom central, com potencial para ser um fantástico central, mas ainda não é e já na altura eu tinha comentado, estes elogios exacerbados, que começou logo com uma convocatória para o Mundial com 3 meses de futebol sénior de primeira divisão, em detrimento de um já campeão e titular há época e meia, Gonçalo Inácio, podiam o prejudicar, como fizeram com João Félix, um daqueles que eu detesto, porque podia ser muito mais mas não é porque não quer. Espero que não o estraguem e que ele possa recuperar, para já legalizou-se a critica e isso bom. A culpa desta vez não é do Vlachodimos.
Faltou-me acrescentar que, sim vou continuar a Áustria e a Dinamarca enquanto permanecerem na competição.