O regresso à aldeia
A Áustria de Rangnick não é uma grande equipa porque, lá pelo meio, podemos descobrir vários jogadores banais. Mas é uma das equipas deste Europeu que melhor personifica o poder da crença numa ideia.
Todos conhecemos histórias daqueles treinadores que se tornam especiais e criam uma aura num determinado ambiente, não conseguem honrá-la com títulos quando sobem de patamar, mas voltam a ser os mesmos de antes no regresso às origens. Ralf Rangnick (toda a história dele aqui) personifica tão bem como outro qualquer esse fenómeno do reencontro com a felicidade, fracassada que foi a sua passagem pelo Manchester United, o clube que o elevou à crista da onda, mas onde depois teve de suportar a humilhação suprema de ver a maior estrela da companhia, Cristiano Ronaldo, dizer que não sabia sequer quem ele era. Mais: que ninguém com quem ele tivesse falado sabia quem ele era. A declaração, feita na famigerada entrevista a Piers Morgan, antes do último Mundial mas já após a separação do clube, que depois levou o CR7 para a Arábia Saudita, foi indiscutivelmente marcada pelo despeito que ele sentia por Erik Ten Hag, mas como a ideia era atingir tudo o que tivesse que ver com a gestão Glazer acabou por ricochetear e por atingir Rangnick. Ainda assim, foi uma declaração compreendida pela maior parte dos que a ouviram. É que, apesar da sua condição de guru de gente como Jürgen Klopp, Thomas Tuchel, Roger Schmidt ou do próprio Julian Nagelsmann, como pai de uma escola de treinadores que matou a tradição do líbero que já vinha de Franz Beckenbauer, uma tradição com a qual ninguém na Alemanha se atrevia a mexer, Rangnick foi sempre mais um coordenador, um diretor de projeto, do que um treinador de balneário. Era um ideólogo e, por isso, na verdade, um fenómeno hipster que poucos conheciam. Após o fracasso em Old Trafford, assumiu a liderança da seleção da Áustria, assim uma espécie de Alemanha de vão de escada. Dos melhores treinadores austríacos se acha que atingem o pináculo se trocam a Bundesliga local por clubes da Bundesliga a sério, que é a alemã. Alguns alemães, como Roger Schmidt, por exemplo, começam a fazer nome na Áustria, para depois alargarem a atividade ao país de origem. Ralf Rangnick teve momentos como técnico em casa, mas estava pronto a desistir quando a sua vida mudou através da chegada ao grupo Red Bull, do casamento da ideia por trás da marca de bebidas energéticas com o futebol cadenciado, de pressing constante, que ele sempre advogou. A ideia não é difícil de explicar, ainda que possa ser complicada de executar, pelo nível de competência posicional e de disponibilidade física que implica, mas encontra um problema acima de todos os outros. Os jogadores têm de acreditar nela. Ronaldo, que não sabia quem era o treinador com sotaque esquisito que tinha pela frente, claramente, nunca acreditou. Os jogadores da seleção austríaca, por seu turno, creem nela acima de tudo. É por isso que, mesmo tendo a jogar elementos de nível mediano – e concordemos em classificá-los assim para não sermos antipáticos –, esta seleção austríaca acabou por sair por cima do Grupo D, à frente da França e dos Países Baixos. A Áustria tem gente como Sabitzer, Laimer, Baumgartner ou Arnautovic, mas também mete em campo jogadores do Sturm Graz, campeão local depois de ter sido batido duas vezes na Liga Europa por um Sporting em poupança, outros do RB Salzburgo, que foi afastado pelo Benfica da UEFA mesmo depois daquele início de sonho com a vitória na Luz, e até do Rapid Viena. O que torna esta equipa especial é o facto de ser a personificação de uma ideia, da cartilha pura da escola fundada por Rangnick. Saída a quatro, com os dois defesas-centrais e os dois médios-centro posicionais, laterais projetados, extremos por dentro, toda a gente muito apta no momento de resposta à perda, elevada concentração de jogadores no quadrante onde está a bola... Esta não é uma ideia imbatível, mas a sua ligação a jogadores eufóricos com o regresso de Rangnick à aldeia que o fez crescer torna esta Áustria, a par da Espanha, o melhor exemplo do que faz o poder uma ideia.
Ainda vão a tempo? A Inglaterra acabou à frente do Grupo C, mas fez apenas dois golos em três jogos, repetindo uma “proeza” que já tinha sido a última a alcançar em fases finais, tanto no Mundial de 1990 como nos Europeus de 2020 e 2024. A França acabou por vez frustrada a possibilidade de ganhar o Grupo D, dessa forma vindo complicar a metade luso-espanhola do quadro, e também acabou os três jogos desta fase inicial apenas com dois golos marcados, com a nuance de um ter sido um autogolo e outro um penalti. Os números, aqui, não enganam – dizem que tanto uma como a outra estão a jogar poucochinho e que foram, a par da Croácia, as duas maiores deceções desta fase inicial. Só que, ao contrário dos croatas, tantos ingleses como franceses estão em prova para este novo Europeu, que é o que começa no sábado, com a disputa dos oitavos-de-final. Ainda irão a tempo? Os Mundiais e os Europeus estão cheios de histórias de equipas campeãs com arranques tímidos. A Itália de 1982 e o Portugal de 2016, por exemplo, ganharam as finais sem terem vencido um só jogo da fase de grupos. Mas aquilo que parece é que para lá chegarem tanto a Inglaterra como a França terão de mudar alguma coisa no plano de jogo. Aos ingleses falta conexão, não só entre o meio-campo e o ataque mas também mais à frente, entre os próprios atacantes. Mainoo tem trazido alguma subida no ritmo pausado – demasiado pausado e contemplativo – com que a equipa joga, há quem peça que seja ele o segundo médio, a tal posição da discórdia por onde passaram Alexander-Arnold e Gallagher, mas Southgate parece ser o único a recusar a ideia de baixar para lá Bellingham, interiorizar Foden e incluir na equipa um agitador a partir da esquerda. É que a Inglaterra marcou apenas dois golos e não foi por ineficácia a finalizar: acabou os três jogos com um xG total de 2.19, um dos mais baixos do torneio. Já a França, também excessivamente pobre no plano ofensivo, sofre um pouco do mesmo mal: falta de gente disponível para a frente. Didier Deschamps acumula unidades agonísticas em sacrifício de gente que possa inspirar no ataque e depois de fazer um primeiro jogo com quatro atacantes – Dembelé, Thuram, Griezmann e Mbappé – tem vindo a utilizar sempre apenas três em favor de um meio-campo mais sólido: Dembelé, Thuram e Griezmann na segunda partida, Dembelé, Mbappé e Barcola ontem. Sim, a partir daqui o que importa é não perder. Mas com tanto talento tanto os ingleses como os franceses teriam obrigação de mostrar mais.
A rotação de Martínez. Portugal fecha hoje as contas do Grupo F com o jogo frente à Geórgia (20h, TVI e Sport TV 1) e o que se espera é uma equipa cheia de caras novas. Sim, é importante ganhar, para manter a dinâmica de vitória, e sim, casos haverá em que a paragem não é o mais aconselhável, por poder conduzir ao desfocar dos habituais titulares durante demasiados dias – são nove, entre o jogo com a Turquia e os oitavos-de-final. Por outro lado, haverá gente a precisar de parar e com o chamado “índice lesional” a rebentar a escala – Pepe? Além de que qualquer grupo precisa de mais do que onze ou doze jogadores, pelo que se impõe que outros possam mostrar o que valem. Não só para estarem prontos se depois forem necessários em campo, mas até para baixar o risco de desligarem e começarem inconscientemente a treinar pior se virem que não são relevantes para a fotografia geral. No seu histórico recente feito de presenças contínuas em grandes competições, a seleção nacional já experimentou dois modos diferentes de lidar com o apuramento antecipado. Em 2000, Humberto Coelho mudou nove titulares do 1-0 à Roménia – manteve apenas os centrais, Fernando Couto e Jorge Costa – para os 3-0 à Alemanha, no tal jogo do hat-trick de Conceição-pai. Em 2008, Luiz Felipe Scolari fez oito alterações – manteve Ricardo, Pepe e Paulo Ferreira – entre os 3-1 à República Checa e a derrota por 2-0 com a Suíça. A primeira equipa chegou às meias-finais, a segunda caiu logo no jogo seguinte, mas há uma particularidade pelo meio: é que em 2008 Scolari escolheu o final da fase de grupos para deixar que se soubesse que ia deixar a seleção para se tornar treinador do Chelsea e isso pode ter afetado o grupo. Martínez já viveu situações assim em duas fases finais e em cada uma delas mudou sempre nove jogadores do segundo para o terceiro jogo. Ora, se o catalão já anunciou ontem que Diogo Costa e Ronaldo serão titulares, não é difícil de adivinhar que alterará os outros nove. Vamos poder ver mais gente em campo e, acima de tudo, testar dinâmicas. E no meio disso tudo só peço uma coisa: se é para continuar a usar um lateral interior, que seja com linha de quatro atrás, que é a única forma de podermos explorar os três corredores.
Entrelinhas
Ralf Rangnick has transformed Austria – victory over Netherlands shows exactly how, artigo de Ahmed Walid no The Athletic, acerca do modelo de jogo da seleção austríaca.
Kane appears trapped in remembrance, grasping at his former self, análise de Jonathan Liew, no The Guardian, a propósito das dificuldades encontradas por Harry Kane neste Europeu.
Une equipe moins cohérente, análise de Dan Perez ao futebol da França, no L’Équipe, a complementar com a leitura de Le grand chantier, artigo de Anthony Clément e Hugo Delom sobre as mudanças táticas feitas por Deschamps, no mesmo jornal.
Mbappé and France’s problem isn’t the mask – it’s the men behind him, análise de Nick Miller, no The Athletic, sobre as dificuldades ofensivas da França.
Gallagher the fretful fall guy in England’s midfield tragedy, análise de Barney Ronay, no The Guardian, à falta de rendimento do meio-campo de Inglaterra.
Playing both does not work – so pick Foden over Bellingham, análise de Sam Wallace, no The Telegraph, à compatibilidade entre Foden e Bellingham.
Una moneda, la cruz de Dinamarca y uma celebración estilo Podolski, é a história da qualificação da Eslovénia, contada por Inma Lidón, no El Mundo.
Il patto, il gioco e i giornalisti. Riecco Luciano e i suoi sfoghi, artigo de Andrea Ramazzotti, na Gazzetta dello Sport, acerca do clima tenso vivido após a vitória da Itália sobre a Croácia.
El increíble viaje de Jesús Navas, el superabuelo de da seleción, é um perfil de Navas, escrito por Eduardo J. Castelao, no El Mundo.
Las (dis)continuidades balcánicas y el fútbol, artigo de Miguel Roán, no El Pais, enquadrando o problema dos nacionalismos balcânicos com o futebol.
Eu ontem tinha-lhe perguntado o que achava das prestações da Austria e da Dinamarca.
A da Áustria de certa forma está respondida, continuo a dizer que só é surpresa para quem não acompanhou estas duas seleções, sim seleções e não clubes privados.
Inglaterra e Itália são as seleções mais chatas deste Europeu, ver um jogo de ambas é um sacrifício...