O cubo de Martínez
Portugal sofreu para ganhar à que parece ser a equipa mais fraca do grupo. E, sim, o sucesso nestes torneios faz-se de arranques lentos e finais fortes. Preocupante é que tenha parecido autoinfligido.
Um golo de Francisco Conceição, ao segundo minuto do período de compensações, deu a Portugal uma vitória justa, suada, nervosa e, há que admiti-lo, também afortunada, sobre a República Checa, no arranque nacional do Euro2024. Os três pontos no jogo de estreia deixam já à seleção boas perspetivas de qualificação para os oitavos-de-final, mas a noite fica marcada por uma sensação que não foi de alívio. Foi, isso sim, de desconforto. E não foi desconforto causado pelo adversário, pelo seu jogo direto e muito físico, que a esse a equipa controlou-o bem. Foi sobretudo desconforto autoinfligido, à conta de opções que pareceram vir complicar o que parecia simples. A seleção da estreia, em campo, ontem, assemelhava-se a um cubo de Rubík, aquele brinquedo dos anos 80 com que Roberto Martínez também há-de ter passado tempo na infância: as peças que estavam lá podiam ser as certas, mas no gira e volta a girar o catalão arrumara-as de uma forma que não parecia a melhor, acabando com os cantos azuis na face verde e aos lados amarelos na vermelha. É claro que no final o treinador se socorreu dos números, dos 69 por cento de posse de bola, dos 19-5 em remates, dos 13-0 em cantos, mas isso não é separável da ideia de que os checos queriam que o jogo corresse assim. Eles não queriam ter a bola, tanto que quando a tinham a batiam largo, em busca de um duelo aéreo e da correria dos médios para captar a sobra. Eles não queriam rematar muito – pois então se não tencionavam sequer visitar muitas vezes à nossa área. Visto do outro lado, o jogo pode ser apresentado como punição justa de uma equipa que escolheu defender-se tão atrás que por isso mesmo se sujeitou ao castigo máximo nos dois erros que cometeu, o primeiro quando o guarda-redes Stanek largou de forma trôpega, contra a perna do central Hranac, uma bola cabeceada por Nuno Mendes e ela se encaminhou para as redes, e o segundo no momento em que o mesmo Hranac intercetou mas não aliviou um cruzamento de Pedro Neto e deixou a bola à mercê da finalização de pé esquerdo de Conceição. Os checos tiveram aquilo que mereciam. Mas os checos parecem ser a equipa mais fraca do Grupo F. Ao cubo deles faltam peças. Ao de Portugal não. Portugal tem um cubo completo, lustroso como poucos, e só precisa mesmo de completar os 20 movimentos – está provado que são 20... – que deixem as cores encaixadas no sítio certo. O desatino de ontem acaba por não ter consequências, porque se somaram os três pontos e se aprendeu com o que se fez mal. Não nos livra da necessidade de ganhar no sábado à Turquia, porque só a vitória aí nos encaminhará para o primeiro lugar e para o lado “bom” do sorteio, mas deixa-nos com margem de segurança para o apuramento. E não ficamos sequer mal acompanhados: a França também jogou pouco, a Inglaterra igualmente, a Itália e os Países Baixos tiveram de remontar resultados, a Bélgica até perdeu... Entre os mais fortes, só a Alemanha e a Espanha entraram a acelerar – e já se sabe que isso, nestes torneios, nem sempre é bom. A não ser que – e é aqui que está a razão de preocupação – o façam por já terem uma ideia clara de onde arrumar cada peça. Eles têm a fórmula que completa o cubo, aquela fórmula que enquanto petizes traficávamos entre nós nos intervalos das aulas como se fosse um mapa do tesouro. Nós, não é que ainda andemos a experimentar, mas parecemos mais interessados em provar que há várias maneiras de fazer o cubo.
O paradoxo Cancelo. Não há melhor exemplo do que correu mal a Portugal ontem e de como isso não é novidade do que o jogo feito por João Cancelo. A questão não é tanto ele defender como lateral e atacar como médio interior – isso, já Martínez faz desde que abdicou do 3x4x3, logo após os primeiros jogos, acabando agora por manter a ideia quando voltou ao sistema original. Além de que isso é já banal. A questão também nem é que Cancelo não seja capaz de o fazer, porque é. A questão é que estamos a perder um bom lateral deixando-o, lá está, desconfortável em cada momento do jogo. Ontem, como optou por fazer de Nuno Mendes central pela esquerda, de maneira a tê-lo no início de construção a três – com Pepe e Rúben Dias –, Martínez pedia a Cancelo que fosse lateral esquerdo na linha de cinco no momento defensivo e segundo médio, perto de Vitinha, por dentro, no momento ofensivo. Lateral, ele raramente foi, porque os checos nem lá chegavam – e aqui, reconheçamo-lo, não há-de ter sido irrelevante o facto de ele estar tão perto de Nuno Mendes para acorrer às segundas bolas sempre que os checos apontavam ao central esquerdo as tentativas de jogo direto, ainda que também fique por provar a necessidade de formar com cinco atrás contra uma equipa que tinha tão poucos argumentos. Cancelo, portanto, foi quase sempre médio interior, o que em si já não é fantástico (há-de haver no grupo quem faça melhor o lugar), mas ainda por cima trouxe mais uma série de problemas por arrastamento. Primeiro: fez falta à direita, onde Dalot protagonizou um jogo insuficiente, e onde ele depois surgiu, com ganho, a partir do minuto 63, quando entrou Inácio para central esquerdo, Nuno Mendes subiu para ala esquerdo e Cancelo mudou para a direita. Mal ou bem, foi assim que a equipa fez os dois golos. Segundo problema: com Cancelo ao lado de Vitinha – autor de excelente jogo, quem sabe se por estar a cumprir uma missão que é a dele – no nosso 3x2x5 ofensivo, Bruno Fernandes passa para o quinteto da frente. Há quem prefira assim, porque desta forma ele se aproxima da baliza, mas uma das coisas que mais falta fez a Portugal ontem foi meter mais cedo nos lances o risco que lhe proporciona a visão em grande angular do médio do Manchester United, dar à equipa o seu passe-chave em momentos em que os checos ainda não tivessem agrupado. Terceiro problema: Ronaldo ficou desamparado numa equipa à qual faltou sempre presença na área. Se nos nossos cinco da frente estão Dalot e Leão, cuja missão é sair da linha lateral com bola, Bernardo Silva e Bruno Fernandes, três-quartistas de qualidade mas mais homens de último passe do que de área, e Ronaldo, a missão deste especifica-se. Antes do jogo com a Irlanda, escrevi que Ronaldo tinha de deixar o seu futebol peripatético na busca permanente pela ligação com a equipa, porque o que se pede dele é que fique na área, finalize e fixe os centrais. Ele, pelo contrário, incrementou esse tipo de jogo – e a coisa correu bem. Mas correu bem porque a equipa dispôs as três unidades centrais do quinteto da frente em 1+2, com Félix atrás de Ronaldo e Leão (depois Jota) e houve sempre contra-movimentos para compensar as derivações do capitão. No regresso ao 2+1, voltámos a estar curtos. E só fomos buscar os pontos em desespero de causa.
As substituições tardias. Quando um treinador vê, aos 90+2’, a equipa marcar o golo da vitória numa jogada iniciada por um dos suplentes que ele chamou ao jogo – passe progressivo de Inácio –, inventada por outro – drible e cruzamento de Neto – e finalizada por um terceiro – golo de Conceição – pode dizer-se que foi um herói que tinha o segredo da vitória no plano de jogo. Digo-o sem qualquer ponta de ironia: o jogo foi ganho no banco. Isso não invalida que as substituições tenham sido excessivamente tardias. Esperar pelo minuto 90 – com quatro de acréscimos – para fazer três substituições num jogo em que era preciso marcar vai para lá da fé cega e chega a ser irresponsabilidade pura. A um dos suplentes que entrou nessa altura, Nélson Semedo, não lhe foi creditada sequer uma ação com bola. Deu na mesma para ganhar? Deu. Mas a sensação de ver Francisco Conceição marcar um golo decisivo no primeiro toque na bola num grande torneio, ao fim de 112 segundos em campo, é uma sensação que todos preferiríamos não ter de viver de novo. Se der para ser mais cedo, a malta agradece.
Entrelinhas
Roberto Martínez’s crazy ideas machine has made Portugal fun but flawed, análise de Tim Spiers às particularidades táticas de Portugal contra a República Checa, no The Athletic.
Arda Güler: Choir-boy looks, thunderous foot and the hearts of Ancellotti, Montella and Turkey, explica quem é a jovem sensação da seleção turca, pela pena de James Horncastle, no The Athletic.
Le Suriname, l’âme fatale des Pays-Bas, artigo de Bernard Lions, no L’Équipe, sobre a fonte de jogadores vindos das Antilhas para a seleção neerlandesa.
Why did Clarke drop Gilmour, his best player at retaining possession?, é um artigo de Sam Dean, no Telegraph, acerca da mais discutida das opções do selecionador escocês no jogo de abertura.
Zambrotta y la reinvención pendiente del fútbol italiano, explica, em conversa de Juan I. Irigoyen com Zambrotta, no El País, o papel dos laterais modernos.
El viaje del poeta ‘Bambi’ Musiala, la esperanza alemana, conta, em artigo de Abraham P. Romero, no El Mundo, a história de Jamal Musiala e a razão pela qual optou pela Alemanha em vez da Inglaterra.
Así funciona el balón inteligente que rije la Eurocopa, é um artigo de Abraham P. Romero e Emilio Amade, no El Mundo, a explicar a tecnologia por trás da Fussballliebe, a bola do Europeu.
Veremos como corre o resto do Euro mas se Fernando Santos não tinha um plano B e se limitava a um 433 excessivamente defensivo, Martinez não tem se quer um plano A. Fez a qualificação em 343 e 433, faz uma convocatória claramente para 433 e acaba a jogar em 3412. Veremos como será contra equipas mas fortes mas não auguro nada de bom. Veremos se não muda mais um ou mesmo duas vezes, jogou com um lateral a central, outro a médio (4 laterais no 11 é obra), um avançado a ala esquerdo, a tácita é caótica, é tudo ao molho e fé em deus e só se safou porque são muito bons jogadores e com uma sorte tremenda, fazer substituição em cima dos 90 minutos (detesto os treinadores que o fazem), nunca resulta, teve a sorte do corte falhado ter levado ao movimento reflexo do guarda-redes adversário, que assim ficou batido e tinha Conceição no sitio certo à hora certa.
Bom Dia. Don Antônio. Concordo, o jogo já no intervalo pedia jogadores desequilibradores para quebrar aquelas duas linhas de 5, o ataque era muito previsível. Tivemos sorte, mas diria que eles tiveram mais, o remate do gol pôdia ser feito 20 vezes mais e não entraba da mesma forma. Por outro lado, baixo minha ignorância, não creio que este seja o rival mais fácil do grupo, em teoria deveria ser a Geórgia. Mas ainda sinto que Turquia e Geórgia se expõem mais quando saem a jogar, será mais fácil conseguir espaços contra eles. Embora vamos ter mais dificuldades em defender, penso que Portugal é melhor neste tipo de rivais, não naqueles que colocam duas linhas de 5 muito bem fechadas e complicadas. Um abraço.