Jornada de aquecimento
A jornada de aquecimento para o dérbi trouxe dificuldades inesperadas a Benfica e Sporting, que vão entrar na última curva a par. E evidenciou a incongruência de quem critica os que competem.

Palavras: 1343. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Sporting e Benfica sofreram, de maneiras diferentes, é verdade, mas sofreram para ganhar os seus jogos da 32ª jornada e entrar no dérbi de sábado com os mesmos 78 pontos. Mas... e se não tivessem ganho? O que é que mudava? O que é que mudava se o Benfica tivesse sofrido um segundo golo do Estoril naquele tempo de compensação cuja extensão achou demasiado longa? Tinha de ganhar ao Sporting para ser campeão? Assim também tem de o fazer. O que mudava se a bola socada por Andrew depois de um canto não tivesse corrido para o afago da bota direita de Quaresma, a meio daquele tempo de compensação cuja limitação os Leões contestaram, e o central não a tivesse depois enfiado na baliza do Gil Vicente, garantindo a vitória? O Sporting teria de ganhar ao Benfica para ser campeão? E assim não tem de o fazer? Na verdade não tem, o empate até pode bastar-lhe, mas o atual campeão terá sempre de passar pelo duro teste do dérbi para revalidar o título. E é muito difícil de avaliar a vantagem da hipótese de se jogar por dois resultados. Não diz uma das mais antigas máximas do futebol que “quem joga para empatar, acaba por perder”?
De qualquer modo, o que esta jornada fez por todos nós foi voltar a mostrar que só quem faz disso hábito não percebe quão ridículo é atacar os adversários dos grandes por perderem os seus jogos – ou sobretudo pela forma como os perdem, tentando ganhá-los. Já se viu de tudo. Veem-se ataques às equipas que escolhem jogar no campo todo, como fez o Estoril contra o Benfica, porque depois abrem espaços atrás e convidam os grandes a aproveitá-los. “Contra eles vão abertos, jogar ‘o jogo pelo jogo’”, queixam-se os rivais, que não estão a ver quando essas mesmas equipas crescem, vão em busca do resultado e criam embaraços defensivos aos favoritos. E veem-se ataques a equipas que, como fez o Gil Vicente em Alvalade, montam sistemas defensivos coesos, desinteressando-se do ataque, sobretudo se por obra e graça da incompetência alheia se encontram em vantagem no marcador. Mas quem o diz também não está atento ao facto de essa excessiva concentração defensiva atrás permitir que o grande suba cada vez mais as suas linhas e acabe por fazer golos como os que o Sporting fez ontem, de ressaltos e recargas. Se o Estoril jogasse mais atrás não tinha posto em causa a baliza de Trubin, se o Gil Vicente jogasse mais à frente não tinha roubado os espaços de que vive o ataque do Sporting, mas aquilo que estas análises escamoteiam é que tanto os Leões como as Águias já encontraram de tudo neste campeonato. E se de umas vezes ganharam, o que até é o mais natural, porque têm meios incomensuravelmente superiores, de outras perderam ou empataram.
Neste fim-de-semana, tanto o Estoril como o Gil Vicente tiveram meio jogo estrategicamente afinado e outro meio em que falharam a abordagem. A diferença é que o Estoril entrou mal e depois corrigiu, enquanto que o Gil Vicente entrou bem e depois acabou por ficar curto. O Estoril entrou aberto, a tentar jogar no campo todo, sem criar superioridades atrás, mas cedo se viu a perder por dois golos, sobretudo em função dos arrastamentos provocados na sua zona mais recuada pela mobilidade de Pavlidis e pela capacidade de verticalizar por dentro de Amdouni e, sobretudo, Aktürcoglu. Ian Cathro mobilizou os três centrais para defender estes três homens e eles não chegaram. E, mesmo metendo muita gente a atacar, falhou de início na identificação daquele que devia ser o corredor certo, quando abriu João Carvalho na direita, para aproveitar a atenção ali dada a Begraoui. E melhorou muito quando o trocou de lado e lá colocou Guitane, bem mais competente no um-para-um. O Gil Vicente, por sua vez, entrou com a abordagem estratégica correta para anular o futebol de Gyökeres, baixando o bloco – o que roubava ao sueco a possibilidade de buscar as diagonais para a profundidade de que ele tanto gosta – e, sobretudo, colocando quatro homens na primeira linha defensiva. Os gilistas só defendiam em 4x4x2 no último terço, porque no início da sua organização defensiva o faziam em 4x2x4, apertando os centrais do lado com Félix Correia e João Marques e fazendo-o sempre de fora para dentro, o que lhes tirava a possibilidade do uso do pé dominante no lançamento. Depois, quando Rui Borges chamou Harder e o Gil passou a ter de defender cada vez mais atrás – e com cinco –, César Peixoto pôs-se ainda mais a jeito daquilo de que acabou por se queixar, os tais golos de recargas.
Do que estas constatações nos falam é da manta curta, que se tapa à frente destapa atrás e vice-versa. Em condições normais, os candidatos ao título ganham estes jogos, porque têm mais e melhores jogadores. Às vezes, porém, colocam-se condições anormais e os candidatos deixam cair pontos. Oito dos 14 pontos que o Sporting deixou fugir em jogos que não foram contra os outros três da frente aconteceram naquelas quatro jornadas desastrosas com João Pereira, entre a saída de Ruben Amorim e a entrada de Rui Borges. Cinco dos 12 pontos que o Benfica perdeu nas mesmas circunstâncias fugiram nas quatro rondas iniciais, ainda sob as ordens de Roger Schmidt. Essas são as condições anormais. Mas um dos problemas do futebol português, sempre visto na perspetiva dos grandes, é que se contesta até o ardil tático e estratégico que leva as outras equipas a encontrarem meios que lhes permitam equilibrar as coisas. Como se a tal não tivessem direito. Critica-se os que jogam aberto porque depois não se defendem, como se critica os que metem o autocarro, porque depois não atacam. E o que é mais extraordinário é que, com tanta conversa, o mais certo é o campeonato se decidir no confronto direto. Os dois candidatos ao título ganharam nesta jornada de aquecimento para a finalíssima do campeonato, mas na prática as coisas seriam mais ou menos iguais se não o tivessem feito. Não acredito que seja possível jogar uma partida desta magnitude para segurar um empate – o que é diferente de não reconhecer, no final, as suas consequências, se ele vier a verificar-se.
Para o Benfica, o dérbi de sábado, ainda por cima jogado em casa, tem de ser encarado na perspetiva de o jogar para ganhar, porque esse é o único resultado que, das duas uma, ou dá desde logo a certeza matemática do título – se for por mais de um golo – ou permite que as Águias viajem para Braga, no último dia, a depender de si mesmas. Mesmo ganhando por um o Benfica será campeão se depois empatar em Braga. A diferença, se o Estoril tivesse chegado ao empate no passado sábado, é que não podia haver festa encarnada com chancela definitiva no dia 10 e mesmo a vitória faria o objetivo final depender do tal empate em Braga. Para o Sporting, aquilo que o golo marcado por Quaresma ao Gil Vicente trouxe foi a noção de que o empate, afinal, até pode servir. Entrando na Luz em igualdade pontual, os Leões sabem que serão campeões ganhando – sem esse golo final ainda seriam forçados a vencer também o Vitória no último dia – e que, mesmo empatando, serão os únicos a entrar na ronda final a depender apenas de si mesmos. Depois, há o efeito psicológico. Uma coisa é entrar na decisão na sequência de uma vitória emocionante, outra é fazê-lo após um empate frustrante e uma demonstração de incapacidade. Mas nada disso leva a que aquilo que Rui Borges tem de exigir aos seus jogadores seja diferente do que pedirá Bruno Lage aos dele: ambição e jogar para ganhar. Porque, lá está, quem joga para o empate...