Gomes e todos os Santos
A receita de Fernando Gomes para o sucesso na década à frente da FPF passa pela insistência num rumo, mesmo quando perde. É um bom princípio. Mas há um ponto a partir do qual se torna injustificável.
Na celebração dos dez anos de mandato como presidente da FPF, Fernando Gomes deixou-nos a todos um lembrete importante: “ganha mais vezes quem estiver disposto a não mudar tudo a cada vez que perde”. A década de Gomes à frente do futebol português tem sido de sucesso inegável, tanto do ponto de vista do sucesso desportivo, como no plano das infra-estruturas, da visão estratégica ou da construção de quadros competitivos satisfatórios e que funcionem como base de um desenvolvimento sustentável a partir das bases. O propósito do recado que deixou terá provavelmente sido o de rebater a crescente contestação a Fernando Santos, treinador das vitórias no Europeu e na Liga das Nações mas também agora da possível ausência no Mundial. Pode no entanto ser extensível a tudo aquilo que lhe corre menos bem. Só que há um ponto a partir do qual a definição firme de um rumo se transforma em teimosia – e aí já não é bom.
Não gosto de cultos de personalidade de inspiração norte-coreana como o que se montou recentemente em torno da década de Fernando Gomes na FPF, mas isso não me impede de reconhecer como tem sido absolutamente notável a liderança do atual presidente federativo. Foi com ele que a seleção principal venceu, finalmente, alguma coisa – um Europeu e uma Liga das Nações – e que a equipa de futsal chegou também à glória de um Europeu e de um Mundial. Foi com ele, com a reforma dos quadros competitivos e a inclusão das equipas B na II Liga, que as seleções de sub21 voltaram a ser competitivas e vencedoras. Foi com ele e Tiago Craveiro que Portugal passou a contar a sério nas estruturas de poder internacionais, sobretudo na UEFA de Çeferin. Foi com ele e com a ajuda que Ronaldo lhe dá no plano das sponsorizações que a FPF atingiu a solidez financeira, o que lhe permitiu abalançar-se a projetos como a Cidade do Futebol ou o Canal 11, a primeira fundamental para o crescimento das categorias de base nas seleções e o segundo decisivo na batalha – que está por vencer, no entanto... – da alteração da mensagem em torno do futebol, dando mais voz aos protagonistas e aos escalões mais modestos, com a consequente diminuição do ruído provocado pelas narrativas propagandísticas de quem quer apenas influenciar em seu próprio benefício.
A tudo isto, “chapeau”! É o suficiente para considerar estes dez anos um sucesso retumbante.
Não falamos, no entanto, de um homem providencial. Do local onde me encontro, também vejo falhas. Vejo falhas na forma como Gomes tem deixado o saco de gatos que é a Liga cozinhar em lume brando a presidência de Pedro Proença, não utilizando a influência que tem nos planos desportivo e até político para favorecer a criação de uma Liga forte e governável. Não tem de o fazer? Não, de facto. Mas podia.
E, se nos ativermos mais ao plano presente e às contestações de que são alvo o selecionador nacional, Fernando Santos, e a presidente do Conselho de Disciplina, Cláudia Santos – não, não são família... – vejo falhas na forma como Gomes defende as suas equipas às vezes para lá do razoável, passando de conservador e de líder solidário com os seus subordinados a alguém que é simplesmente demasiado resistente à mudança.
Como expliquei aqui, não sou favorável à saída de Fernando Santos do comando da seleção neste momento, porque não vejo qualquer possibilidade de um novo selecionador mudar seja o que for em dois ou três dias de trabalho antes dos playoff. Mas isso não impedirá que uma reflexão mais profunda, a fazer em Março, possa vir a indicar-nos que o selecionador passou o prazo de validade e talvez já devesse ter saído há mais tempo, tendo cristalizado no cargo em virtude do tal conservadorismo do líder.
Como também expliquei aqui, creio que a escolha de Cláudia Santos estava ferida de morte desde o início do mandato, seja devido à indesejável – ainda que legalmente autorizada – acumulação de cargos com a política ou a um passado com os mails do Benfica que inevitavelmente voltaria para a assombrar. O órgão presidido por Cláudia Santos é contestado pelos três grandes – o que até funciona como sinal de independência. Pode até ser vítima dos becos e barreiras que os juristas passam a vida a colocar à frente uns dos outros, como a “doutrina do campo de jogo”, que serviu no caso-Palhinha, os prazos processuais para recursos ou audição de testemunhas ou até as regras da magistratura, que atrasam castigos para lá do razoável, mas isso interessa pouco ao cidadão comum. A este, fomentado pelas tais narrativas que o Canal 11 não consegue abolir, interessa constatar que não faz sentido aplicar antes de dois clássicos castigos por infrações cometidas no tempo em que as galinhas ainda tinham dentes. E tem razão.
A década de Fernando Gomes à frente da FPF tem sido um sucesso retumbante, mas se havia coisa de que ele não precisava para a comemorar era o risco de ausência de um Mundial ou a constatação de que a justiça da FPF continua a não funcionar.