Duas partes distintas
O Sporting-Benfica foi o chamado “jogo de duas partes distintas”, mas desenganem-se os que acham que a explicação está na troca deste por aquele ou numa ordem de qualquer treinador.
O Sporting-Benfica de ontem, cuja crónica analítica está aqui, foi um daqueles jogos que mudou tanto de uma metade para a outra que é suscetível de provocar nas pessoas os sentimentos mais díspares, entre os que arrasam Roger Schmidt por ter escolhido mal o onze e os que destroem Rúben Amorim por ter feito mal as substituições. O futebol tem esse condão, de nos sugerir que sabemos sempre mais acerca do jogo e das suas equipas do que aqueles que nele trabalham há décadas, sejam eles analistas ou treinadores – e depois o que mais interfere nas análises é a propensão para vermos o copo meio cheio ou meio vazio. E a verdade é que quem se manifesta se centra sobretudo na escassez, assume sempre que tem a resposta para todos os dilemas e possui o segredo das substituições certas... ao contrário dos incapazes a quem calhou a sorte de terem as equipas às suas ordens. Porque ninguém que andasse pelo Twitter no final do riquíssimo dérbi de ontem via adeptos a elogiar a escolha do onze e o plano inicial de Amorim ou as mudanças e a reação de Schmidt ao intervalo. Não: o que se via era que o alemão era estrategicamente fraco, que não soubera montar a equipa para os desafios que o Sporting lhe apresentava, ou, mais tarde, que Amorim era incapaz, que estragara a equipa com as trocas. O que este jogo continua a dizer-nos, porém, é que futebol não é química, que neste jogo nem sempre dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio geram uma molécula de água. Que há situações em que talvez a introdução de mais um defesa nos permita atacar melhor. Que, noutras, bater a bola longa na frente não será a melhor maneira de manter o adversário longe da nossa área. Que o desfecho de um lance inofensivo influencia 45 minutos, seja porque nele se bateu a linha de pressão adversária e isso nos deu confiança para que possamos fazê-lo outra e outra vez ou porque se perdeu um passe na tentativa de o fazer e depois disso já nem o tentamos, com receio de voltarmos a ser apanhados na curva. E isso acaba por ser mais importante do que qualquer constatação de que “eles estão a entrar pela esquerda, portanto temos de ir meter mais um tipo desse lado”. Ou do que a famigerada “atitude”, espécie de pedra filosofal dos analistas de bancada. O dérbi de ontem foi jogado nestes detalhes. Vimos um excelente Sporting durante 45 minutos, a mostrar capacidade para iludir um adversário ambicioso na pressão através de uma saída baixa que tem recompensa proporcional ao risco a que obriga. E vimos um Benfica mais forte nos outros 45 minutos, a evidenciar que estar na frente faz muito pela confiança com que se aborda a segunda parte de um jogo que parecia estar entregue e que o facto de o adversário estar longe dos objetivos também lhe atrofia a mente. Este foi o chamado “jogo de duas partes distintas”, sim senhores, mas desenganem-se os que acham que a explicação está na troca deste por aquele ou numa ordem de qualquer treinador. E também é isso que faz do futebol um jogo extraordinário.
Póquer Taremi. Quatro golos num jogo são sempre quatro golos num jogo, mesmo que três tenham sido de penalti – na Alemanha, o Bayern também perdeu a liderança da Bundesliga com uma derrota em casa contra o RB Leipzig na penúltima jornada graças a dois golos de penalti e não vi isso assim tão valorizado. Taremi manteve o FC Porto vivo para o último dia com um póquer em Famalicão, num jogo que pareceu fácil, se tornou difícil aos 2-2 mas que o FC Porto acabou por ganhar como tem ganho sempre: a sofrer um bocadinho, mas com justiça. A verdade é que se vamos ter campeonato até ao último dia isso se deveu à capacidade que os adversários a partir de determinada altura encontraram de contrariar o futebol do Benfica, mas também à recusa do FC Porto em desistir. Essa competitividade, mais do que o “contra tudo e contra todos” que faz bandeira entre os mais radicais, tem de ser valorizada e fica como uma das marcas deste campeonato. O 4-2 em Famalicão garantiu ao FC Porto de Sérgio Conceição a sexta Liga seguida com pelo menos 80 pontos. E isso, como o póquer de Taremi, é que fica na história.
Vini Jr., Tebas e os burros. O tema do momento em Espanha são os insultos racistas a Vini Jr. e a resposta inaceitável de Javier Tebas, o presidente da Liga. O atacante brasileiro foi expulso na ponta final do jogo do Real Madrid em Valência, após ter dado com a mão na cara de Hugo Duro, quando já não estaria a pensar bem, fruto dos incidentes anteriores, em que acusou claramente um adepto rival de lhe ter chamado “macaco”. Apontou-o a dedo mesmo, levando a que o jogo estivesse dez minutos parado. Depois da expulsão, Vini levantou dois dedos em direção à bancada, o que os adeptos locais interpretaram como “Vão para a segunda divisão”, a isso respondendo em coro afinado e reiterado: “Macaco! Macaco! Macaco! Macaco!” Não é a primeira, a segunda, a terceira ou até a décima vez que isto acontece com Vini Jr. na Liga espanhola esta época – e a normalização da conduta ficou à vista de todos em duas situações. Primeiro, nos muitos vídeos que entretanto foram postos a circular, difundidos pelos próprios ofensores, o que demonstra que mais do que arrependimento estes terão algum orgulho no que tinham acabado de fazer. Depois, na reação de Tebas aos tweets do jogador, acusando-o de não ter comparecido às sessões de esclarecimento promovidas pela Liga para explicar o que pode fazer em casos como este. O que é mais ou menos como acusar a mulher violada de não ter ido às aulas de Religião e Moral para saber que não devia sair de mini-saia ou com decote pronunciado. “Não sou teu amigo para debater racismo contigo”, respondeu Vini Jr. E eu vou mais longe e assumo que, face às cavalidades que vão para os estádios insultar os artistas ou às que normalizam este tipo de atitudes, sim, sou racista: “Burros!”
O que estão a fazer ao Vini é vergonhoso, precisa de sair da Espanha
Não se pode criticar ou menorizar o comum adepto por, em momentos de paixão ou frustração, criticar as opções de treinadores, as acções de jogadores ou decisões de árbitros. Muito menos, a omnisciência de décadas de trabalho eleva os profissionais á intangibilidade! Sejam os treinadores, os jogadores, os árbitros, os médicos, os tratadores de relva, e, também, os jornalistas, comentadores... Não esquecer que o adepto é também o consumidor.