O muro de Leverkusen
A AS Roma de Mourinho confirmou ontem, em Leverkusen, num jogo com zero de atacante, a segunda final europeia seguida. Pode não parecer um poema, mas é o material de que se fazem as epopeias.
Uma das coisas de que gosto no futebol é que o jogo é ao mesmo tempo simples e complexo. É tão simples de ver que, na sua simplicidade, pode levar-nos a escolher lados até ao extremo da irracionalidade. Mas pode ser bastante complexo de analisar, se o que procuramos é avaliar méritos. É possível admirar a teia montada por Guardiola no Manchester City, de que vos falei ontem no Futebol de Verdade e nas Conversas de Bancada, e ao mesmo tempo elogiar o jogo minimal da AS Roma de José Mourinho, que se apurou para a segunda final europeia seguida. “Isso é resultadismo!”, acusam logo os que já escolheram lado no pleito filosófico entre duas escolas, a dos que pensam e a dos que fazem. Não é. Não preciso de estar em cima da ponte, incapaz de optar por duas margens tão diferentes, para vos dizer que o jogo do City continuará a ser brilhante mesmo que perca a final com o Inter e que a eficácia de Mourinho continuará a ser admirável – ainda que menos espetacular – mesmo que saia por baixo da sua sexta final europeia, contra o Sevilha FC. Daquilo que se trata aqui é de avaliar circunstâncias. É muito mais corajoso o futebol de Guardiola? Sim. E não. É bastante mais corajoso naquilo que propõe, se olharmos para a coisa em abstrato. Já não o é tanto se avaliarmos as condições em que o faz, porque tem muito melhores jogadores. Seria tão idiota jogar para não se jogar com o grupo que tem o City como é meritório o futebol que Guardiola montou com ele. No empate que conseguiu ontem em Leverkusen, a AS Roma tinha no banco jogadores capazes de tornar o espetáculo mais atrativo, abordando o jogo de forma mais corajosa? Sem dúvida que sim. Havia pelo menos Dybala e El Shaarawy, dois candidatos a evitar que os melhores em campo fossem os gladiadores Matic e Bove, a par do centurião Rui Patrício. Mas, com esses jogadores e uma abordagem temerária, teria a equipa de Mourinho conseguido os objetivos? Talvez, que o adversário não era uma potência insuperável. O 0-0 que a AS Roma arrancou terá sido o cúmulo do aborrecimento para quem não o via em sofrimento pelas suas cores ou para preparar uma tese sobre futebol defensivo, porque o que a equipa italiana fez foi sobretudo construir um muro à frente da baliza de Rui Patrício, de forma a impedir os alemães de atacar com perigo. E isso fê-lo bem. Para se defender e guardar o golo de vantagem que trazia da primeira mão, a equipa de Mourinho fez apenas um remate em 90 minutos – contra 23 do adversário –, o que pode ser apresentado como um exemplo da sua incapacidade para propor jogo, uma deficiência que está também a custar-lhe a carreira na Serie A, onde é apenas sexta classificada, já a seis pontos da zona Champions. É ainda verdade que, já tendo o foco nos comportamentos defensivos, era mais corajosa a forma de defender do FC Porto de 2003 do que é a da AS Roma de 2023. Defendia mais à frente, pressionava mais, inovava na forma de estar em campo. Passados 20 anos sobre essa primeira final europeia, porém, é preciso dizer que Mourinho vai para a sexta e que ganhou as cinco que já jogou. E que a de 2003 foi a única em que sofreu golos. Ganhou em 2003 e 2004 com o FC Porto, em 2010 com o Inter, em 2017 com o Manchester United e em 2022 com a AS Roma. E isso pode até não parecer um poema, mas não deixa de ser o material de que se fazem as epopeias.
Pressão e contra-pressão. Faltam duas jornadas para acabar a Liga e, como se isso não fosse já suficiente para fazer subir a pressão das contas pelos objetivos ainda em aberto, domingo é dia de Sporting-Benfica. Nestas alturas, já se sabe, a tarefa da Liga é vender a incerteza e a emoção. Liga a ferver. A tarefa dos treinadores é aliviar o pipo dessa pressão, quer tenham ou não atingido os objetivos. Nem Schmidt nem Amorim ganham nada em ter os jogadores como pilhas de nervos, o primeiro porque precisa deles tranquilos para obterem a vitória que ainda lhes falta para se sagrarem campeões nacionais, o segundo porque, dependendo daquilo que se passar no Boavista-SC Braga, amanhã, pode até entrar em campo para a última jornada com possibilidades matemáticas de se qualificar para a Champions – desde que ganhe ao Benfica, bem entendido. Percebo os acessos de moralismo bacoco de quem veio criticar que alguns dos intervenientes do dérbi tenham tido autorização para ir a um concerto, anteontem, porque já se sabe que essa é uma narrativa que vende bem junto das frustrações do adepto quem nem conseguiu cheirar os bilhetes, quanto mais ir a Coimbra. “Então eu cumpro lá na minha repartição e não fui aos Coldplay e estes incompetentes ainda recebem um prémio por estarem em quarto lugar?”, resmungam, como se estivessem a falar de meninos pequeninos e o treinador fosse o professor da escola primária, que distribui doces ou reguadas consoante os alunos sabem melhor ou pior a tabuada do cinco. O que já percebo pior é que a Liga deixe que o operador televisivo espalhe as decisões por vários dias, correndo o risco de anular o que pode tornar os jogos deste fim-de-semana únicos. Sim, eu seu que são as televisões que pagam o futebol que temos – no fundo somos nós, que pagamos as televisões com as nossas mensalidades. Mesmo achando e defendendo que as calendarizações precisam de olhar mais para o adepto de estádio e menos para o adepto de sofá, não alinharei jamais na igualmente bacoca narrativa que manda diabolizar as TVs, porque sem elas não haveria dinheiro para se pagar aos craques – que assim, pelo menos, já não conseguiriam bilhetes para os ColdPlay... Mas há uma altura em que, todos juntos, Liga, clubes e operadores, têm de perceber que já estão a prejudicar o produto. Que interesse terá o Sporting-Benfica, no domingo, se no sábado o FC Porto perder em Famalicão e o SC Braga ganhar ao Boavista no Bessa, fechando desde logo as contas do título e da Champions? Que interesse terão o Santa Clara-Portimonense de amanhã e o FC Paços de Ferreira-Rio Ave de domingo se o Marítimo ganhar hoje ao FC Vizela, arrumando desde logo as contas da descida de divisão? Aquilo que a Liga e os operadores estão a fazer é aquilo que compete aos treinadores. É a dizer que isto é “jogo a jogo”, que “o adversário é forte”, mas que também estão “conscientes das suas próprias qualidades”. É a tirar pressão e, com isso, a tirar interesse ao produto que deviam vender.
O candidato qu’ajuda? Fiquei curioso com a notícia segundo a qual Manuel Cajuda vai ser candidato à presidência do Olhanense, clube da terra dele, campeão de Portugal de 1924, que ainda há uma meia dúzia de anos andava na I Liga, mas que entretanto caiu na hierarquia do futebol nacional e se prepara para voltar ao distrital de Faro. E se fiquei curioso não foi tanto por ver um ex-treinador passar para o lado dos dirigentes, que isso acontece com frequência. Foi precisamente por ser Manuel Cajuda, figura emblemática das coisas práticas, símbolo daquilo que foi moda no futebol português da década de 90, que era a ligação de balneário com base numa mística que era quase uma irmandade entre treinador e jogadores. “Eles é que jogam, e eu sou o qu’ajuda”, brincava o algarvio que levou o SC Braga aos seus melhores momentos na era pré-Salvador. Cajuda foi muito melhor treinador do que jogador. A questão agora é a de perceber se consegue fazer a transição para uma posição mais distante ou se dá um novo significado à função para a qual concorre. Seja como for, tem tudo para ser entretido.