Dois jogos, quatro lições
As vitórias deixam a seleção lançada e essa é uma lição importante de um estágio que nos mostrou ainda a melhor forma de gerir Ronaldo, uma complexidade inibidora e o habitual conservadorismo.
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Portugal ganhou à Escócia e, depois de já ter ganho à Croácia, sempre na Luz, sempre pela margem mínima e com doses de sofrimento indesejadas, isolou-se no comando do seu grupo da Liga das Nações. Isso é bom, mesmo que as maiores dificuldades – que serão os jogos fora de casa – ainda estejam por vir e que, em bom rigor, o segundo adversário deste arranque de competição, a Escócia, seja claramente a equipa mais fraca do lote que nos tocou. O regresso da seleção após um Europeu de mínimos olímpicos serviu para isso, para somar seis pontos, para se lançarem dúvidas acerca da complexidade tática em que a equipa continua a insistir e que às vezes parece travá-la, para mostrar ao Mundo que Roberto Martínez começa a gerir melhor Cristiano Ronaldo, sob a máxima de que “menos pode ser mais” e, por fim, para que todos realizemos que por mais que o selecionador nos diga o contrário a cada intervenção, é praticamente impossível entrar no grupo fechado que ele formou no dia em que chegou e... jogar.
Mas comecemos pelo melhor, que foram os seis pontos. Do jogo com a Croácia já vos falei aqui, no Último Passe de sexta-feira. O de ontem, quem bem o resumiu foi Bruno Fernandes, aniversariante e melhor em campo: “Foi uma prenda sofrida”. E vamos a ver uma coisa: se há particularidade que distingue a Liga das Nações é a de que não tem jogos fáceis. Se nela estão as 16 melhores seleções da Europa, conclui-se que não haverá os chamados “refrescos”. Mas continua a haver uns adversários mais acessíveis do que outros. E a Escócia, que até esteve no Europeu, onde acumulou um empate e duas derrotas (entre elas uma chapa cinco da Alemanha), perdera no arranque, no santuário de Hampden, contra a Polónia, além de que nos últimos 12 meses só tinha ganho dois jogos, um a Chipre, que fazia ontem exatamente um ano, e o outro a Gibraltar. Era, portanto, o mais acessível que podia haver na prova. A vitória não era uma obrigação, que no desporto nunca o é, mas seria a normalidade ante uma equipa que só queria ter bola no seu meio-campo ofensivo para poder ganhar faltas que lhe permitissem metê-la na área por alto e explorar a dimensão física do jogo. Pois bem: missão cumprida! A vitória chegou, ainda que só ao 88º minuto, com o golo salvador de Ronaldo, mas manda a justiça que se diga que podia ter chegado antes, tanto em lances nos quais vimos boas defesas de Gunn a remates de Leão ou Félix, como nas duas bolas que o mesmo Ronaldo enviou aos postes.
A seleção nacional acabou o jogo com 26 remates, sete dos quais enquadrados, e com 45 ações na área adversária – contra a Croácia tinham sido 15 remates, seis enquadrados, e 18 ações na área adversária. Bom jogo, então? Se quisermos ser benévolos, sim. Se optarmos antes por enquadrar o jogo no que dele queriam tirar as duas equipas, menos. A Escócia teve uma intenção apenas: impedir que os portugueses ligassem jogo pelo corredor central, para os forçar a cruzar, cruzar, cruzar, cruzar. Steve Clarke usou uma linha de cinco homens e uma segunda, de quatro, as duas bem juntas à frente da sua área, encaminhando o adversário para os corredores laterais. E este foi obediente: contabilizou o GoalPoint 36 cruzamentos de bola corrida, um número altamente desaconselhável para quem depois tinha de enfrentar na área defesas centrais altos e espadaúdos como os escoceses Hanley e McKenna. Acontece que não era só o autocarro escocês a contribuir para este jogo de Portugal. Também a complexidade tática que Martínez procura sempre – e de que ontem abdicou ao intervalo – levava a equipa a esse fim. Como sempre, para dar a largura aos extremos, Neto e Leão, o selecionador mandou os laterais jogar mais dentro. Isso, em si, não apresentaria grande problema. Problemático foi que, depois, Nélson Semedo não se limitasse a sobrecarregar o corredor central em zonas mais baixas, mas aparecesse ele nas entrelinhas, em área de criação, o que levava a que de lá tivessem de sair os verdadeiros criativos. Enquanto isso foi acontecendo, por isso mas também porque Nuno Mendes respeitava mais os fundamentos da sua posição e Leão tinha o espaço para vir dentro que faltava a Neto – ainda por cima mais jogador de campo aberto do que de enfrentar adversários fechados – a equipa só teve corredor esquerdo. E esta lição, a complementar a que já o jogo com a Croácia tinha mostrado, foi a segunda da vitória de ontem.
A terceira teve que ver com Ronaldo. O CR7 fez um bom jogo contra a Croácia e ontem partiu do banco. Martínez explicou – e bem – que se ele só podia jogar 45 minutos fazia muito mais sentido que fizesse a segunda parte do que a primeira, porque com a sua entrada acordaria o estádio. Isso aconteceu, a mostrar que o povo que enche as bancadas da seleção quer tanto ver Ronaldo como o próprio Ronaldo quer sempre jogar todos os minutos de todos os jogos. A decisão, no entanto, não deve depender da vontade popular nem do capitão de equipa e a tomada por Martínez foi boa, porque não é razoável esperar que um atacante de 39 anos se mostre ao mais alto nível durante 180 minutos separados por 72 horas apenas. Pena é que o mesmo Martínez não tenha sido capaz de gerir assim Ronaldo durante o Europeu e o tenha utilizado de início, durante 66 minutos, no insignificante desafio com a Geórgia, quatro dias apenas depois de ele ter feito 90 minutos contra a Turquia, oito após mais um jogo inteiro contra a República Checa e, fundamental, quatro antes do decisivo desafio com a Eslovénia e oito antes da eliminação contra a França, estes dois últimos com prolongamento. Sopram-me que Ronaldo só jogou contra a Geórgia porque Jota estava lesionado e Ramos – que depois o substituiu e teve nesse dia o maior período de utilização em todo o Europeu – também, após o choque com o steward no final do jogo anterior, mas o que vinha a seguir era bastante mais importante do que um jogo do qual não dependia já a qualificação nacional. Portugal podia até jogar com Rui Patrício a ponta-de-lança que daí não viria mal nenhum ao Mundo – a única coisa que se perdia era a possibilidade de Ronaldo fazer o golo que queria no Europeu para se aboletar a mais dois recordes.
Martínez disse recentemente em duas entrevistas que tinha “dados confidenciais” a provar que não houve sobre-utilização de Ronaldo no Europeu. Eu acho que houve e que um Ronaldo fresco pode ser útil à seleção – ontem foi – mas um Ronaldo cansado não é útil nem mesmo a ele próprio. E gostava muito de ver os “dados confidenciais” que mostram que o Ronaldo de Setembro, em início de época, não pode fazer dois jogos seguidos em tão curto período, mas o Ronaldo de Junho, em final de temporada, já pode. Tal como gostava de ver os dados de GPS a que ontem aludiu Rúben Neves para provar que corre mais na Liga Saudita do que corria na Premier League. E atenção: ontem, Rúben Neves entrou muito bem, como entraram todos os suplentes que Martínez chamou ao relvado. Mas não nos iludamos: entraram porque se sentaram a tempo na carruagem cujas portas o selecionador abriu assim que chegou à Cidade do Futebol e cujos lugares estão permanentemente ocupados desde então. Martínez pode agitar o facto de ter chamado a este estágio Tiago Santos, Renato Veiga, Giovanny Quenda, Francisco Trincão ou Pedro Gonçalves, mas daí a colocá-los em campo ainda vai uma distância que o mais conservador de todos os selecionadores europeus não está disposto a percorrer. Nos dois jogos desta jornada da Liga das Nações, Portugal registou um minuto de utilização de jogadores que não estiveram na fase final do Europeu, com a entrada de Pedro Gonçalves ao minuto 90 do desafio contra a Croácia. A outra equipa com duas vitórias na Liga A, que é a Dinamarca, somou 296, vindos das participações de Gronbaek, Nelsson, Dorgu, Isaksen e Frendrup. A Itália, que ainda só jogou uma vez e que ganhou em França, já soma 226, através de Ricci, Tonali, Udogie, Brescianni e Kean. A própria Alemanha, a quem o Europeu correu melhor do que a Portugal, num só desafio, já tem 38 minutos, de Pavlovic e Stiller. E até a Espanha campeã da Europa nos supera, com os 42 minutos de Aleix García e Yeremy Pino. Esta foi a quarta lição deste estágio: o grupo é aquele e para nele entrar é preciso um milagre.
Estou a 100% de acordo quanto à análise sobre o Cristiano Ronaldo. Cansa-me ver a idolatria à volta dele e como isso parece condicionado as escolhas do selecionador e da própria Federação. Pelo menos, durante o euro Parece ter sido isso que aconteceu. É bom que o primeiro seja absolutamente imune a pressões e escolha os jogadores apenas e só com base no que é melhor para a equipa.
Independentemente do conservadorismo do selecionador, há coisas que são absolutamente inexplicáveis. A (não) utilização de Pedro Gonçalves, ou, pior, a sua utilização por 1 minuto, é uma delas. Um dos jogadores portugueses mais regulares das últimas várias épocas é sistematicamente preterido para dar lugar a jogadores que não têm nem números no clube, nem condição física, nem rendimento na Seleção quando são chamados que justifiquem a sua preferência. O caso mais gritante é o de João Félix, mas há outros. Rúben Amorim, no ano passado, resumiu a coisa de forma certeira: o selecionador prefere esses jogadores e fim da conversa.
Martinez vive obcecado com um 325 a atacar que me parece não ser o apropriado, demasiada gente na frente e ninguém num linha mais recuada, mais próxima do avançado. Leão fica demasiado encostado à linha o que não me parece a melhor forma de usar as suas características. O Bernardo Silva também fica demasiado na lateral em vez de jogar no meio. A ideia do lateral a médio, além de absurda, já todos conhecem.
As convocatórias de Martinez são para mim um mistério. Escolhe um grupo que nunca desfaz, convoca jogadores só para treinar e estar presentes. Demora anos a chamar Pedro Gonçalves, que mantenho é jogador para ser titular ou discutir a titularidade, pois nada deve a Bruno Fernandes e é um jogador essencial quando Martinez escolhe o 343. Chama Quenda após 5 jogos de futebol de alto nível. Já no Europeu convoca jogadores para um 433 para começar em 343.