Choque de mundos
Os adeptos de Dortmund aproveitaram a visita do Newcastle para protestar contra o que entendem ser a nova ordem do futebol, mas falharam o tiro, que o mal não é o dinheiro e sim a sua origem.
A visita do Newcastle United a Dortmund, ontem, simboliza na perfeição a colisão entre dois mundos do futebol de hoje, o poder antigo, das massas, que não deixa de ter componente financeira, contra o novo poder, o da “massa”. E, como acontece sempre, o novo poder está a ganhar – e vai ganhar, porque por mais faixas de contestação que se exibam nas bancadas, por mais barras de ouro simuladas, notas falsas ou bolsas com cifrões que se atirem para o relvado em sinal de protesto, ninguém resiste ao dinheiro. Até quem está frequentemente ante o poder da “muralha amarela” do Westfalen Stadion, o bastião mais evidente da velha ordem, teve de se resignar a chamar ao mítico estádio do Parque Bolmke o Signal Iduna Park – porque quem paga aquelas bancadas, quem paga aquela equipa que ontem reagiu aos 0-4 do Bayern com uma vitória sobre o clube-emblema da Arábia Saudita na Europa é a financeira alemã. A preocupação dos adeptos do Borussia é muito digna e legítima e mostra que se há sítio onde o poder do dinheiro encontra mais resistência é precisamente na Alemanha, um país cuja Liga força quase todos os clubes a manterem 50 por cento mais uma ação na posse dos sócios. É por isso que é na Alemanha que surgem os mais expressivos protestos do poder dos adeptos, como o que ontem foi exibido em noite de Liga dos Campeões. Viram-se uma tarja em inglês, com os dizeres “All you care about is Money” [“Tudo o que vos interessa é o dinheiro”], outra com o endereço de um site que basicamente é um manifesto contra a reformulação da Champions League (pode visitá-lo aqui, que há versão em inglês) e ainda uma caricatura de Gianni Infantino a dar uma injeção numa bola, ao mesmo tempo que segura um livro com o título “How to kill the football” [“Como matar a bola”]. Ao lado dele estão mais dois dirigentes, aparentemente Nasser El-Khelaifi, que além de ser o representante do estado do Qatar no Paris Saint-Germain é o presidente da ECA, a Associação Europeia de Clubes, e Andrea Agnelli, o ex-dirigente desta associação, ex-líder da Juventus e ex-entusiasta da criação de uma Superliga dos mais ricos. Ora é aqui que a crítica perde parte do sentido. Porque mais do que revoltar-se contra o dinheiro, a revolta deve ser contra a origem desse dinheiro. A luta contra a “elitização” do futebol, contra o aumento do preço do espetáculo, que cada vez limita mais o acesso a quem pode pagar – preferem-se poucos a pagar muito a muitos a pagar pouco – é legítima, mas é mais fácil de travar quando se está num país com 83 milhões de habitantes e se possui a escala suficiente para alimentar o futebol através da massificação. Além de que basta ler o artigo que escrevi acerca dos Donos da Bola na Alemanha para perceber que até os clubes alemães são expressão de potentados financeiros: o Bayern da Adidas, da Audi e da Allianz, o Borussia Dortmund da Evonik e da Signal Iduna, o Leverkusen da Bayer, o RB Leipzig da Red Bull, o VfL Wolfsbug da Volkswagen, o VfB Estugarda da Mercedes... O problema, aqui, não é o dinheiro em si, mas si aquilo que nos leva a que, perante o dinheiro, queiramos sempre mais, a ponto de a determinada altura baixarmos as defesas. Da mesma forma que o problema não é a Superliga, mas sim a possibilidade de ela nascer sem subidas e descidas, de maneira a que só lá caiba uma clique de privilegiados e se extinga o direito de todos os outros a sonhar lá jogar um dia. É esta ganância que leva o futebol a sucumbir ao dinheiro fácil, ao dinheiro de quem tem tanto que se está nas tintas para a manutenção de padrões morais indispensáveis a este e a qualquer desporto – e até à vida em sociedade. É por isso, mas sobretudo porque neste momento quem tem o domínio da receita recorrente é a UEFA, através da Champions, que a FIFA quer expandir o Mundial de clubes ou anda de mãos dadas com um regime como o da Arábia Saudita, tendo feito o possível e o impossível para lhe desimpedir o caminho para a organização do Mundial de 2034. A guerra que aí vem já não é a guerra entre a velha ordem, dos adeptos remediados, contra a nova, das elites favorecidas pelos clubes modernos, mas sim a guerra para definir quem vai mandar na angariação e distribuição do dinheiro. É a guerra entre a FIFA e a UEFA – e nela não ganhará necessariamente quem vier a mostrar escrúpulos. E isso é que é preocupante.
As “vacas fit” e a restrição calórica. Foi feliz a expressão utilizada por Sérgio Conceição para dizer que a sua equipa não está em tempo de vacas gordas nem magras, mas sim em tempo de “vacas fit”. E foi feliz porque espelha na perfeição uma realidade que, por mais que alguns tentem vender o milagre da multiplicação dos pães em casa alheia para justificar fracassos, é a realidade global do futebol nacional. O que se pede às equipas portuguesas é que sejam competitivas ao mesmo tempo que alienam regularmente os seus melhores jogadores para compensar o facto de o futebol português ser, por regra, deficitário na gestão corrente. O que se pede aos gestores do futebol nacional, sejam eles diretores desportivos, treinadores ou até presidentes, é que façam o bulking em tempo de restrição calórica, isto é, que consigam obter o aumento de peso que antecede a hipertrofia muscular ao mesmo tempo que cortam nos hidratos. Serve isto para explicar que as vacas magras se dedicam à maratona, as gordas ao halterofilismo, mas as fit são as que servem o futebol, tanto no FC Porto como no Benfica ou no Sporting. E que o problema do FC Porto não é, nunca será, o de procurar equilibrar-se em tempo de vacas fit. O problema do FC Porto, nestes últimos tempos, é que se desencantam as receitas para ir ao hipermercado – ainda ontem foi dado mais um passo importante para a entrada de mais dez milhões através da qualificação para os oitavos-de-final da Champions – mas depois vai-se às compras e vem-se de lá com o carrinho cheio de hidratos de carbono de absorção rápida. Que, já se sabe, são digeridos num instante e levam ao aumento do apetite por mais comida muito depressa.
Gostos e tendências. Há coisas que a malta gosta de dizer que são manias mas que na verdade são tendências para levar muito a sério, ainda que depois se possa gostar mais de uma maneira ou da outra. O eterno debate jogo curto versus jogo longo assistiu ontem a uma vitória desta última escola, por exemplo nos passes magistrais de Sudakov e Griezmann antes dos golos de Sikan e de Morata (o primeiro dele, segundo do Atlético). Nenhum deles foi assistência e para aquilo dar golo ainda teve de ser tudo bem feito a seguir, o último passe e a finalização, mas – e é aqui que entra a questão do gosto, que para quem sofre de miopia passa sempre por valorizar quem vê bem ao longe – acho que sem estes momentos o futebol fica uma coisa muito sensaborona. Outra moda desvalorizada por muita são os alas de pé trocado. Mas teria Pepe feito o golo que o transformou no jogador mais velho a marcar na Champions se daquele lado direito não houvesse um pé esquerdo – no caso de Conceição – a cruzar? Teria o Atlético chegado à goleada sem o golaço do destro Samuel Lino a partir do lado esquerdo ou sem a sua movimentação para o espaço interior na assistência para o segundo golo de Morata? Olhem que eu acho que não.