Pepê, Conceição e o fogo amigo
Sérgio Conceição esclareceu que o fogo amigo não era para os médicos, mas sim para todos os departamentos do FC Porto... menos os que estão acima. E é aí que entra Pepê, o jogador “holístico”.
A adesão pública de Sérgio Conceição ao “holismo”, a tradução abrasileirada de “wholism”, uma espécie de teoria de tudo que tem tantos méritos reais mas que infelizmente se distingue sobretudo pelo facto de convencer néscios com coisas que não conseguem compreender, não encontra melhor explicação do que a dada por Pepê, o extremo “holístico” que no FC Porto foi tantas vezes defesa-lateral e que esta semana foi convocado para a seleção do Brasil. Pepê é aquele genro de quem todas as sogras gostam, sempre disponível para ajudar, seja a montar uma sanefa, a fazer um furo na parede para pendurar um quadro ou a acertar o molho do guisado antes do almoço de família. Fernando Diniz, que além de ter acabado de ganhar a Libertadores com o Fluminense também está a quebrar um galho como selecionador brasileiro, e por isso também é um treinador “holístico”, disse que “em princípio”, apesar de só ter três defesas-laterais na lista, o jogador do FC Porto vai “como atacante”, mas que ele “tem mobilidade e capacidade” para poder jogar como defesa lateral. O próprio Pepê lembrou que é extremo “de raiz” e que fazer marcação “é complicado”, mas o seu histórico funciona contra ele, transforma-o numa espécie de suspensão ativa, num daqueles órgãos do corpo humano que a “medicina holística” vê numa perspetiva integrada, porque compensam as falhas dos outros e acabam por se prejudicar a eles mesmos e, no limite, ao coletivo, que no caso deles é mesmo a carcaça que os envolve. Nesta analogia, Sérgio Conceição vem vestido de sogra e Pepê de genro prestável, que faz tudo menos o que devia de facto fazer. Ontem, três dias depois de ter permitido que a frustração da derrota caseira contra o Estoril o levasse a disparar publicamente na direção da estrutura, associando diretamente a coisa às lesões, Conceição corrigiu o tiro de maneira a não vitimar o departamento médico com fogo amigo e falou dos departamentos de análise e observação e de comunicação. Estendeu até a exigência aos tratadores da relva, aos funcionários do restaurante, aos nutricionistas, aos podologistas, aos optometristas... A todos e ninguém ao mesmo tempo. No fundo, o treinador assumiu a responsabilidade falando de tudo o que está abaixo dele na cadeia alimentar, mas a ideia com que fico é a de que o tiro devia ser dado para cima, pois é lá que está o problema. Acima de Conceição, o drama do FC Porto é ter as contas no estado em que estão e não ver maneira de fazer mais-valias no futuro imediato a não ser com Diogo Costa e, talvez, com Pepê e Evanilson – que também foi colocado por alguns comentadores na órbita da seleção brasileira depois do “hat-trick” de Antuérpia. Ao nível do treinador, o drama é o do terapeuta “holístico” que viu fugir talento, não o viu reposto em doses sequer aproximadas, e se refugia numa teoria do todo para manter o organismo em funcionamento, quando devia olhar para o que funciona melhor e dar-lhe brilho. Não é fácil reconstruir em andamento, mas é igualmente complicado querer que a equipa continue a jogar de acordo com ideias de outros anos, criadas a pensar naquilo que podia dar-lhe, por exemplo, Otávio. Pepê não é Otávio, mas é jogador de seleção brasileira e devia reclamar que a reconstrução começasse por ele em vez de se andar a ver onde é que faltam peças e a encaixá-lo aí. Contra o Estoril, Pepê começou por ser um Otávio a partir da esquerda, ali entre médio-ala e terceiro médio a jogar por dentro, mas passou depois por ser interior direito num 4x3x3, defesa-direito num 4x2x4 e acabou a extremo-esquerdo numa espécie de 3x3x4. Foi, mais uma vez, um jogador “holístico”, ao invés de ser o especialista que no entanto exigiria um novo contexto para ser eficaz. Vêm aí dois jogos fundamentais para o FC Porto. Uma vitória na receção ao Royal Antuérpia, desde que somada à derrota do Shakhtar em Barcelona, deixará hoje os dragões a um ponto – na pior das hipóteses – de se qualificarem para os oitavos-de-final da Champions. A visita ao Vitória SC, no sábado, se for ganha, permitirá a Conceição ver o Benfica-Sporting de domingo com a certeza de que vai ganhar pontos a pelo menos um dos rivais. O FC Porto é favorito nos dois jogos, porque é melhor do que os adversários, mas tem de os enfrentar com plena consciência de que o drama em que se encontra é bem mais agudo do que os seis pontos de atraso que leva para o líder da Liga ou do que a necessidade da receita de entrada na fase a eliminar da Liga dos Campeões para equilibrar contas. Há, contudo, fortes indícios de que as duas coisas possam começar a resolver-se da mesma maneira: o crescimento de Pepê.
A escolha de Postecoglu. O Tottenham perdeu pela primeira vez nesta Premier League, num jogo cheio de incidências. O 1-4 contra o Chelsea devia ser abordado na perspetiva da loucura corajosa de Ange Postecoglu, que viu a equipa reduzida a dez homens aos 33’, sofreu o golo do empate logo a seguir, ficou com nove aos 55’, mas manteve a linha defensiva alta para ir à procura de uma vitória que dificilmente chegaria e acabou por levar três golos com bolas nas costas. Foi bonito. Idiota, mas bonito. Romântico. “É o que nós somos, ‘mate’. É o que somos e o que seremos enquanto eu aqui estiver. Podemos estar reduzidos a cinco homens que ainda vamos querer ir em busca da vitória”, disse o australiano. E se tivesse ficado por aqui estava tudo bem. Só que não ficou. O jogo teve cinco golos anulados, oito idas do árbitro ao VAR e, em consequência disso, um total de 21 minutos de acréscimos. Ao contrário do que sucedera no Newcastle-Arsenal do último fim-de-semana, nenhuma das decisões finais da equipa de arbitragem foi errada, mas nem isso a salvou. “Não podem dizer-me que os árbitros controlam os jogos, porque não controlam. Os jogos são controlados por alguém frente a um monitor. A próxima medida será uma investigação forense para cada decisão que tomam. Hoje passamos ali muito tempo especados, à espera, e eu preferia ver futebol”, queixou-se Postecoglu, que da mesma forma que anunciou que iria na mesma em busca da vitória com cinco jogadores de campo – e não podia fazê-lo, porque com menos de seis o jogo acabava... – também é um caso raro de um treinador que diz aceitar todas as decisões dos árbitros. Mesmo as erradas. A questão é que a tecnologia não mudou o futebol – a tecnologia mudou o mundo. Uma coisa é aceitar a decisão errada de um árbitro a jogar pelo South Melbourne na década de 80 – “foi assim que eu cresci”, diz o australiano – e outra é aceitar a mesma decisão na Premier League em 2023. A primeira podia estar certa ou errada, ninguém sabia verdadeiramente. A segunda é tão escrutinada, que achar que ela pode passar sem contestação é tão bonito, tão romântico e tão idiota como jogar com nove e manter a linha defensiva para lá do meio do campo. A escolha de Postecoglu não é entre ter ou não ter VAR – e ele escolheria não ter. É entre falar do tema ou não. E a escolha das entidades que regem o futebol também não é entre ter ou não ter VAR. É entre permitir ou não permitir que os jogos sejam filmados. E já todos sabemos que o Mundo não anda para trás.
O desastre do Botafogo. A terceira derrota seguida do Botafogo – e a sétima em onze jogos – levou-me a mudar de opinião. A equipa que Luís Castro deixou à 12ª jornada, com sete pontos de avanço do segundo, e de que Bruno Lage foi afastado à 25ª, ainda com a mesma distância para a perseguição, mas depois de quatro jogos sem ganhar, perdeu ontem com o Vasco da Gama (1-0) e, ainda que com um jogo a menos, já foi alcançado no topo pelo Palmeiras de Abel Ferreira – tendo o Bragantino de Pedro Caixinha a um ponto. O que o Botafogo mostrou há dias na primeira parte do jogo com o campeão, antes do desastre que foi o segundo tempo, levou-me a dizer que achava que a equipa de John Textor ia na mesma ser campeã. A derrota de ontem e sobretudo o que a equipa não fez – não criou uma situação de golo em 90 minutos de um jogo que era fundamental – leva-me agora a achar o contrário. O Botafogo foi 11º no último campeonato e há dois anos estava na Série B e eu gosto destas histórias em que os underdogs se impõem. Mas para isso têm de o merecer. E esta equipa neste momento está a jogar muito pouco.