Choque de dois mundos
A reunião de donos de clubes da Premier League, hoje, é uma espécie de prelúdio para dois eventos potencialmente cataclísmicos e fundadores do futebol moderno. E não, nenhum tem que ver com o VAR.
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A votação e consequente rejeição da folclórica proposta do Wolverhampton WFC para acabar com o VAR é que vai fazer os títulos das notícias e as aberturas dos noticiários desportivos, porque é uma espécie de homem a morder o cão, mas a parte fundamental da reunião que os 20 donos dos clubes da Premier League manterão hoje, em Harrogate, não é essa. Hoje vai também a escrutínio uma perigosa sugestão do Manchester City para o aligeirar das restrições impostas aos grandes grupos no futebol britânico, espécie de ponta-de-lança do movimento que, a sair vitorioso, brevemente se tornará global. A coisa ainda dá para rir um pouco, porque permitiu a Kaldoon Al Mubarak, presidente do City e testa de ferro do dinheiro do Abu Dhabi que tem elevado o clube a patamares de domínio nunca antes sonhados, manifestar-se vítima de “discriminação” pela “tirania das maiorias”, mas tem de ser vista num plano abrangente. É que se o Manchester City não é, nem de perto nem de longe, único beneficiário deste tipo de financiamento estatal no futebol inglês ou mundial, a ação agora empreendida é uma espécie de prelúdio para dois eventos potencialmente cataclísmicos e por isso mesmo fundadores no futebol moderno: o processo em que o tetracampeão inglês terá de defender-se de 115 acusações de violação das regras financeiras da Premier League e a tomada de posição da UEFA acerca da entrada de um segundo clube do grupo City, o Girona FC, na próxima Liga dos Campeões.
O que estará em causa hoje, na reunião entre os donos dos clubes, é uma votação em torno das regras para as “transações com associados”, vistas como uma das formas mais clássicas de driblar as restrições impostas pelo fair-play financeiro. Se um clube tem limitações legais à sua possibilidade de investir, não por lhe faltar o dinheiro mas por não gerar receita suficiente de maneira a equilibrar os livros, o que tem a fazer é inflacionar algumas verbas provenientes de empresas associadas na coluna da faturação, eventualmente até ajudando estas empresas na sempre difícil arte de lavar o dinheiro que ganham. É aqui – e não na possibilidade de haver resultados combinados – que está o maior perigo da multipropriedade de clubes. Da mesma forma que a Premier League limitou os negócios entre empresas associadas, forçando por exemplo que os acordos de patrocínio acima de um milhão de libras anuais feitos com marcas do mesmo grupo necessitem de ser aprovados pelo comité executivo da própria Liga, caberá às diversas instâncias do futebol em todo o lado entender que esse inflar artificial da coluna das receitas pode ser facilmente atingível com transferências “fictícias” de jogadores entre os clubes de um mesmo grupo. E o problema aqui não é tanto o de se perceber o que queremos para o futebol, fixados naquilo que o jogo era noutros tempos e que, não, não volta a ser, por mais saudosistas que sejamos. É sobretudo o de se entender o que é legal e o que é ilegal. E a ação do City nasce aí, na noção de que estas regras limitam a concorrência e a liberdade dos mercados, se vistos num âmbito extra-futebolístico.
Hoje, o mais certo é que a proposta do Manchester City para aligeirar ou até abolir as regras em torno das “transações com associados” seja derrotada. Fala-se da possibilidade de um clube votar ao lado do City e especula-se se será o Chelsea ou o Newcastle United, onde os donos sauditas se viram impossibilitados de investir tudo o que queriam, limitados pela regra que impede qualquer emblema da Premier League de registar prejuízos superiores a 105 milhões de libras a cada três anos. “Tínhamos pouca receita. Se iam proibir tudo iríamos acabar em último lugar, sem hipóteses”, queixou-se Amanda Staveley, a representante e sócia dos sauditas na entrada no Newcastle United. E quando a Sela, companhia de eventos detida pelo mesmo fundo saudita que comprou o Newcastle United, quis pagar uns insanos 25 milhões de libras anuais pela publicidade nas camisolas do clube nordestino, a Premier League viu-se impotente para o impedir e o negócio fez-se. O que o futebol inglês nos está a mostrar – que em breve se tornará mais opressivo por todo o Mundo – é a colisão entre dois mundos, porque mesmo que a proposta do Manchester City acabe derrotada por aquilo a que, num extenso documento legal, o clube chamou a “tirania das maiorias”, os “níveis inaceitáveis de controlo” que 14 clubes podem ter sobre as regras da competição, o mais certo é que depois, quando a discussão for da assembleia de clubes para o plano legal, acabe por ver a sua razão aceite. Porque por mais justificação moral que lhe encontremos, por mais que defendamos, com razão prática, que ele foi criado para defender o futebol dos oportunistas, dos esquemas ilícitos que acabam por custar a vida aos clubes, por mais que consideremos que é com ele que se mantém – ou será que se “fabrica”? – a competitividade nas Ligas, o fair-play financeiro é uma forma de cristalizar os grandes e de manter os outros no seu clube de pequenos, sem hipótese real de virem a crescer.
Esta foi uma discussão muito mantida em França, quando o estado do Qatar comprou o Paris Saint-Germain. Falava-se do sportswashing de uma sociedade tirânica, onde, lá está, não há a tirania das maiorias de que se queixam os responsáveis do City mas sim a tirania da minoria, de uma família em específico, que é a família do emir. Falava-se do apoio alegado ao Daesh, como forma de enegrecer moralmente as vitórias do PSG. Mas quem queria falar de futebol puro e simples, sem mais complicações, falava de outras coisas, como da impossibilidade de desafiar os gigantes europeus sem investir. Como é que uma equipa com as receitas de TV da Liga francesa podia desafiar consolidadamente os gigantes corporativos que competem na Premier League ou até os dois grandes de Espanha? Só com um investimento muito acima do que as regras permitem. E se as regras proíbem este investimento a fundo perdido, mesmo a quem acende charutos com notas de 500 dólares, para ele ser feito tem de se recorrer aos tais patrocínios inflacionados. O PSG ainda não chegou ao ponto de vender as estrelas que já não quer por milhões para o Qatar, mas esse é um estratagema que começa a ser usado pelos sauditas. E quem é que vai dizer ao Al-Hilal ou ao Al-Nassr que não podem torrar dezenas de milhões de euros em jogadores ou que, fazendo-o, não podem comprar os do Newcastle United, que até é do mesmo dono – ali, na verdade, é tudo do mesmo dono... – para mascarar as contas à senhora Staveley? Não são, seguramente, os outros clubes da Premier League, que depois a justiça vai dizer-lhes que estão a meter-se onde na verdade não são chamados, porque não distingue um clube de futebol de uma fábrica de peças para automóveis ou de material militar.
Mesmo partindo do princípio de que há muita injustiça no rótulo de gastador excessivo que se coloca no City para diminuir feitos conseguidos à custa da competência que depois falta a outros que gastam ainda mais, para o futebol era bom que o tetracampeão fosse derrotado nesta luta legal e na pretensão de ter um segundo clube, o Girona FC, na próxima Champions. Mas é bom que o futebol se prepare para a realidade, que será bem diferente. O City vai ver a sua ação vencer – não na votação de hoje, mas depois, na justiça – e o Girona FC vai entrar pela Champions, valorizando mais jogadores do grupo e aumentando o seu potencial de negócios, dessa forma ajudando na fuga às restrições de sustentabilidade financeira e dando mais abertura a mais investimento, levando o negócio do futebol para patamares a que a generalidade dos clubes nunca poderá aceder. Os monstros crescem dentro do sistema. E o que o sistema tem de fazer é habilitar-se para os controlar.
O risco de resultados combinados existe sempre, precisamente porque o futebol é uma competição, está integrado na sociedade, está longe de ser um exemplo de moral e bons costumes, não é impoluto, e também deve preocupar. Combinação de resultados, corrupção, tudo é um risco.
As regras europeias são compatíveis com limitações legais à liberdade de mercado, como existem em várias áreas. É possível uma vitória na justiça sim, mas não é uma garantia. Muito embora se fale de uma regra para manter o pequeno, pequeno, uma regra que o sistema politico gosta de manter e até advoga como único possível, mas há regras que limitam a liberdade económica de forma legal, principalmente quando está em causa o branqueamento de capitais.
O fair-play financeiro só existe porque o PSG e Manchester City quiseram ser grandes, depois de Málaga e Chelsea o terem tentado, o facto de o segundo ter tido sucesso e de um clube Francês ter tentado a hegemonia, ainda sem sucesso, mas tornando o PSG num verdadeiro adversário dos grandes da Europa e de Inglaterra, foi a única razão para o qual foi criada a regra.
A multi-propriedade deve ser impedida, mesmo legalmente e é possível, precisamente para defesa da integridade da competição e combate ao branqueamento de capitais, porque o fair-play financeiro e qualquer regra que exista para manter o grande grande e o pequeno pequeno, deve acabar.
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