Como deixei de ser jornalista
Foi precisa uma menção no Joker da RTP para me pôr a refletir a sério sobre o tema. Sim, continuo a fazer jornalismo, todos os dias. Mas não, já não sou jornalista. Explico tudo abaixo.
Palavras: 1547. Tempo de leitura: 8 minutos.
Ainda não tinha chegado a casa, ontem, vindo de Alvalade, onde estive a comentar o Portugal-Finlândia, para a RTP1, e já os mais ativos entre vós me tinham enviado, no servidor de Discord que partilhamos entre a comunidade, printscreens do Joker, o concurso dos serões da RTP que é apresentado pelo Vasco Palmeirim. O meu nome tinha sido incluído, com os do Tiago Alves, do Hugo Gilberto e do Paulo Rico, entre as hipóteses de resposta à pergunta “Quem é o autor do podcast ‘Histórias fora do jogo’”? O concorrente, Duarte Menezes, respondeu que era eu – e perdeu, lamentavelmente. O caso, no entanto, levou-me a questionar aquilo que faço, a maneira como me apresento profissionalmente, e a refletir mais uma vez acerca desta atividade que continua a apaixonar-me, que é o jornalismo. O que o Joker motivou foi que eu retirasse a palavra “jornalista” de todas as apresentações que faço de mim próprio nas redes sociais ou no meu Substack. Ou, no máximo, que acrescentasse, entre parêntesis, a expressão “de corpo e alma”. Porque, na verdade, só continuo a ser jornalista, a cumprir todas as regras desta atividade, na minha cabeça.
O que mais me incomodou neste episódio – e incómodo é uma expressão porventura muito forte, que devia substituir por o que mais me fez refletir – não foi que, depois de o Vasco lhe ter dito que o “Histórias fora do jogo” era do Paulo Rico e que o meu podcast era o “Futebol de Verdade”, o concorrente dissesse que nunca tinha visto ou ouvido nenhum dos dois. Não foi, sequer, que ele tenha afirmado que o meu podcast era “muito polémico” ou que eu estava longe de ser “uma pessoa consensual” – porque além de o não ser, nem fazer nada para em tal me transformar, esse foi o rótulo com que fiquei depois do Extremamente Desagradável que a Joana Marques em boa hora me dedicou, ajudando-me a aumentar a audiência. O que mais me fez refletir foi que, confrontado com o nome do Hugo Gilberto, membro da direção de informação da RTP, o concorrente tenha dito “Esse não, que é jornalista”. Como se as coisas fossem incompatíveis. Como se eu, só pelo facto de ter um podcast, não pudesse nem devesse ser jornalista. E achei que era a altura de pôr tudo às claras. De facto já não sou jornalista, daqueles de papel passado e com número de carteira profissional válido. Era o 1875, mas apesar de continuar a cumprir religiosamente todas as exigências éticas e processuais da carreira, não renovo o título profissional desde 2019. “Porquê?”, perguntar-me-ão. Porque não me serve rigorosamente de nada e me custa dinheiro, respondo eu.
Esta é a reflexão que eu já vinha fazendo há uns tempos. Apesar de não ser jornalista de papel passado, continuo a sê-lo de corpo e alma, de coração. Pratico jornalismo, com tudo o que ele exige, do distanciamento à isenção e ao contraditório, no meu Substack. Sei do que estou a falar, que estudei Comunicação Social e fui professor de mestrado em jornalismo especializado na Universidade Nova de Lisboa e dou neste momento uma pós-graduação sobre a mesma matéria na Universidade Católica de Lisboa. As aulas são uma das formas que tenho de compensar o facto de o número de subscritores Premium do meu Substack não chegar ainda para pagar o salário mínimo nacional a mim próprio. Lá chegarei um dia, espero… Assim sendo, como faz em Setembro dez anos que tive o último emprego nos media mainstream – fui demitido da direção do Record a 1 de Setembro de 2014 e daí para cá nunca mais tive hipótese de entrar numa redação –, vou fazendo comentários na TV (que para isso não tenho de ser jornalista) e, quando é possível, desenvolvo algumas iniciativas em vídeo para patrocinadores.
Como me sinto jornalista e uma das coisas que estão vedadas aos jornalistas são as interações com estes patrocinadores, sempre que faço uma destas ações patrocinadas tenho de utilizar alguém que as negoceie, para tal canalizando parte do rendimento apurado sob a forma de comissão. Como o último destes negócios correu mal – o patrocinador não pagou –, tive de recorrer a um advogado para avançar com um processo e tentar um acordo. E teve de ser, naturalmente, um advogado inscrito na respetiva ordem, o que lhe aumenta a capacidade negocial. Se amanhã ficar doente, até posso recorrer ao Google para tentar a auto-medicação – e atenção que não aconselho isso a ninguém –, mas na farmácia só me vendem o antibiótico de que possa vir a necessitar se vier prescrito por um médico inscrito na respetiva ordem. A quem tenho de pagar em conformidade. A minha mulher começou no ano passado a trabalhar em seguros e, antes de poder vender apólices, teve de fazer o exame da sua associação, o que para trabalhar tem de fazer com aproveitamento a cada dois anos.
O jornalismo não só não é assim, como aparentemente já se instituiu na cabeça do cidadão comum que não tem de o ser. A última coisa que se pede a alguém que queira debater o jogo que a seleção fez ontem já era há muito o facto de ter lido o que sobre ele escreveu um jornalista devidamente encartado. E se calhar ainda bem, porque se há coisa segura é que as entidades que têm poder para legalizar uns e ilegalizar outros, na verdade, estão-se nas tintas para o que é e o que não é jornalismo e se mantêm presas a noções arcaicas e já irrelevantes. Todos os dias tenho a minha irritação com o “jornalismo” autorizado a que vou sendo exposto nas redes sociais, onde o que manda é a busca de escala capaz de tornar viáveis as operações que menos o merecem e permitir que o “jornalismo” continue gratuito, que a pagá-lo estão as resmas de visualizações que ele consegue. Ainda ontem, a uma meia-hora do início do Portugal-Finlândia, a dar uma volta pelo Facebook, fui agredido com o post que aqui vos deixo. “Portugal torna-se o último país a ser atingido por uma lesão grave antes do início do torneio”, lê-se num post, cuja imagem tem Roberto Martínez, o símbolo da FPF e um insert de Cristiano Ronaldo. “Portugal sofre lesão grave, com estrela afastada do Euro’2024 e substituída por jogador da Premier League”, está no subtítulo. A notícia, à qual se acede pelo link nos comentários – para que o algoritmo do Facebook trave menos a sua difusão – é sobre a lesão de Otávio, substituído por Matheus Nunes, mas aquilo que se quer levar as pessoas a acreditar é que o lesionado é Cristiano Ronaldo. Quando o leitor entende que não é assim, já clicou e já foi exposto à publicidade. Já ajudou a pagar a coisa. A página em causa é da SportBible, tem 13 milhões de seguidores no Facebook, 7,6 milhões no Instagram, 2,2 milhões no Twitter e não sei quantos no TikTok, que é coisa que não uso. O artigo é assinado por Ryan Smart, que no Linkedin se apresenta como “jornalista”. Mas aquilo não é jornalismo. É o que funciona, toda a gente vai sabendo que é a maneira segura de ter seguidores, de os fazer clicar no link, de driblar os algoritmos e de deixar as pessoas com o conforto fictício da informação gratuita, mas é o exato contrário de jornalismo. E o Ryan, se calhar, até tem um podcast...
Serve isto para vos dizer que, de hoje em diante, desisti de vos mentir na única coisa em que ainda vos mentia deliberadamente. Não sou jornalista de papel passado. Não renovo a minha carteira profissional há cinco anos. Continuo a fazer exatamente aquilo que mandam as regras do jornalismo, mas não tenho o direito a dizer-me jornalista. Esse fica reservado para todos os especialistas em clickbait, emojis e fintas aos algoritmos, para que vocês sejam expostos às mesmas aldrabices dia-sim-dia-sim. Mas não se queixem, porque por um lado são aldrabices gratuitas e, por outro, vos dão um bom bode expiatório, que são os malandros dos jornalistas. Foi por isso que fechei o meu site pessoal e mudei para o Substack, em Outubro de 2021. Ali, o que veem é o que recebem, seja pelo Mail, pelo acesso via browser ou app ou na cada vez mais rara eventualidade de os artigos vos aparecerem no feed de uma qualquer rede social. Há muita coisa que é gratuita, como há conteúdos que são pagos, e o que eu mais quero é que vocês os vejam a todos – razão pela qual vos sugiro que subscrevam. Mas de uma coisa podem ter a certeza: quando, a 21 de Junho, aqui começar a segunda temporada dos Reis da Europa, com todas as histórias relativas aos campeões nacionais de todos os países europeus, ou quando aqui for fazendo o acompanhamento do Euro’2024, não vou andar à procura de maneiras de garantir que as coisas vos aparecem no feed com as aldrabices que todos sabemos que funcionam. Quem quer subscrever está a tempo – e eu agradeço, naturalmente, que não quero trabalhar só para passar o tempo. Quem não quer, o mais certo é passar ao lado das duas coisas, que o meu tempo não vai ser gasto a enganar as redes sociais mas sim numa coisa que nem sequer tenho direito a praticar. Em jornalismo.
Parabéns pelo texto, excelente para quem não é jornalista.
Já agora uma pergunta, que tenho há muito tenho em mente, porque é que foi demitido do Record?
O jornalismo mundial atravessa uma grave crise existencial. E daí vem, quanto a mim, um dos factores para o actual estado de coisas na sociedades modernas. Pois o jornalismo decente não sobrevive ao click-bait e aos "leitores 10 segundos". E isso está a matar-nos.