Bruges, Nápoles e os grandes em crise
O futebol europeu encontra sempre formas de evitar a cristalização da hierarquia. Mas esse nunca foi o problema. O problema está a nível nacional, onde os ciclos hegemónicos vão afastar público.
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A proeza do FC Bruges, uma das equipas já qualificadas para os oitavos-de-final da Liga dos Campeões, sem derrotas nem golos sofridos nas primeiras quatro jornadas, é o contraponto ideal para a enorme desilusão de gigantes como a Juventus ou o FC Barcelona, dois dos mais fervorosos apoiantes do polémico projeto de SuperLiga europeia, que já estão mais ou menos desenganados no que à continuação em prova diz respeito. Todos os anos há estas equipas-surpresa, como os excelentes belgas ou até o SSC Nápoles, que lidera a Série A com estilo e está a jogar o melhor futebol da competição europeia. Isso é apontado como um argumento contra a Superliga, mas o que verdadeiramente contraria é a cristalização da hierarquia, que o futebol internacional continua – felizmente – a encontrar sempre formas de se renovar, seja pela formação, pela competência no scouting ou pela estabilidade e persistência na direção de recursos humanos.
O FC Bruges já soma dez pontos, que são tantos como três equipas espanholas somadas – se excluirmos do lote o Real Madrid, que também já se apurou e que, possivelmente, será até o único a seguir em prova no país vizinho. A qualificação, a duas jornadas do fim, num grupo onde FC Porto, Atlético Madrid e Leverkusen vão ser deixados a lutar pela vaga que sobra na competição foi surpreendente – para mim, pelo menos –, mas deve ser vista no seguimento de um percurso que já começou há uns anos e que passou por quatro eliminações sucessivas na fase de grupos, em 2018, 2019, 2020 e 2021. Além de que até é um argumento a favor de uma maior globalização das competições. Porque, apesar do arrufo da Union Saint-Gilloise na época passada, o dinheiro vindo da Liga dos Campeões, aplicado de forma inteligente e avisada, serviu ao FC Bruges para se tornar quase clube único no futebol belga: ganhou cinco dos últimos sete campeonatos (entre os quais se contam os últimos três) e já não faz pior que segundo lugar desde 2014, quando acabou em terceiro. É de tal maneira que os belgas já andam a inovar no formato das competições, com a instituição de um playoff que agite as águas. Na Champions, o FC Bruges somou 30 dos 31 pontos belgas nas últimas cinco edições – sobra um ponto feito pelo KRC Genk em 2019. E o FC Bruges nem sequer é caso único neste tipo de monopólio. Há outros mais evidentes, como o Red Bull Salzburgo, que segue no seu grupo com dois pontos de avanço sobre o Milan e o Dínamo Zagreb e pode também apurar-se já na próxima ronda, se as coisas lhe correrem bem na receção ao Chelsea e o Milan não for o primeiro clube a ganhar em Zagreb na atual edição.
O caldo primordial necessário à eclosão destes fenómenos não é feito apenas da pequena dimensão dos seus países – mercados mais diminutos levam a que o dinheiro que vem da Liga dos Campeões seja proporcionalmente mais influente e mesmo decisivo, eternizando-os no topo da hierarquia, naquilo a que Joan Laporta chamaria um “círculo virtuoso”: investimento-títulos-receita-investimento outra vez e assim sucessivamente. É preciso juntar-lhe competência. A competência que os austríacos conseguiram através da definição muito clara do que é o futebol-Red Bull, que lhes permitiu ganhar os últimos nove campeonatos nacionais (e doze dos últimos 15, ficando nas outras três ocasiões em segundo lugar). E a competência que os belgas têm tido, por exemplo, no scouting, com especial ênfase na forma como se têm mexido no mercado nórdico, de onde vieram Skov-Olsen, Nielsen, Nusa ou Onyedika. E há o caso Jutglá, a melhor prova de que o futebol nos surpreende e de que haverá sempre renovação. Ferran Jutglá tem 23 anos, foi formado no Espanyol, que nunca chegou a representar, a não ser em duas temporadas pela equipa B. Na época passada, mudou de cores e foi uma das figuras do FC Barcelona B, aproveitando a crise da equipa principal para chegar ao lote de jogadores com que Xavi Hernández começou a sua tentativa de recuperação do histórico blaugrana e fazer nove jogos. Em Julho, o Barça vendeu-o por cinco milhões de euros, certamente convencido de que estaria a enganar o comprador. Hoje é dos melhores avançados da Liga dos Campeões, com dois golos e duas assistências.
Os clubes-surpresa de Ligas exteriores às Big Five, que dominariam qualquer projeto de SuperLiga privada, aparecerão sempre, seja por meras questões conjunturais que depois não confirmam ou por trabalho consolidado, como é o caso destes dois. Há um ano tivemos o Benfica nos quartos-de-final, em 2021 e 2019 esteve lá o FC Porto, que nesse ano teve ainda a companhia do Ajax. Não podem ganhar a prova, mas isso é próprio do desporto – nem todos entram em condições de ganhar. O primeiro problema – que, ainda assim, do meu ponto de vista, é menos grave – é eles serem poucos: 36 das 40 vagas nos quartos-de-final das últimas cinco edições da Liga dos Campeões foram ocupadas por clubes das Big Five, favorecidos por mercados internos de muito maior dimensão. Isso não quer dizer que o sucesso relativo seja proibido aos outros ou que os que vêm dali tenham de avançar por decreto. Veja-se o que está a acontecer à Juventus, que precisa de um milagre para eliminar o Benfica, ou ao FC Barcelona, que depois de 150 milhões de euros em investimento só não ficará eliminado na próxima jornada se ganhar em Munique ao Bayern e se, ao mesmo tempo, o Inter perder em casa com o Viktoria Plzen, uma das duas equipas que ainda não pontuou sequer na edição deste ano da Champions.
Mas o segundo problema, esse, é que é o real busílis da questão: o que está a ser destruído é a competição nacional. O problema não é a falta de hipótese destes clubes exteriores às Big Five na Liga dos Campeões. O problema é que o panorama atual garante que, desde que com um mínimo de competência, aqueles que obtém sucesso internacional e entram no tal círculo virtuoso se tornam absolutamente hegemónicos nacionalmente. E quando as assistências nos estádios começarem a cair e formos tentar perceber porquê, verificaremos que é porque as novas gerações não sentem grande interesse em seguir clubes que nunca ganham e, ao invés de seguirem o clube único - que aborrecimento! - preferem centrar as suas paixões um pouco mais longe, naqueles que podem ver na TV, mesmo que sejam de campeonatos estrangeiros. Porque, lá está: o paradigma é continental e já não vivemos obrigados a seguir o que está aqui ao alcance da mão.
Eu, se tivesse que escolher, este ano seria do SSC Nápoles.