Bem-vindos ao faroeste
A rixa de ontem, no Montijo, transporta-nos para a cada vez maior intolerância da sociedade e exige que reflitamos acerca do que deve ser a atuação da polícia.
Uma das histórias que o meu pai conta de forma recorrente é a de quando, em meados dos anos 50, o Vitória SC foi jogar a Coruche, na fase final do Campeonato Nacional da II Divisão, ganhou e acabou por subir, impedindo aquela bela equipa do Coruchense, que tinha o Sério, o Veríssimo ou o Julinho, de chegar ao patamar superior. O meu pai conta a história porque aquela terá sido a melhor equipa do Coruchense que ele alguma vez viu jogar – e o máximo que eu alguma vez consegui foi ver o Peseiro, o Teles, o Lascas e o Faria... –, mas também porque acabou tudo à pancada e houve “polícia a cavalo”, para dispersar a multidão em fúria com a arbitragem. Terá sido a versão vintage daquilo que se passou ontem, quando público, técnicos e jogadores do Olímpico do Montijo e da equipa B do Vitória FC se envolveram em vergonhosos confrontos, a que a polícia pôs fim de uma forma que também é para mim inaceitável, disparando vários tiros para o ar.
Nunca percebi na entoação que o meu pai dá à história que viveu na sua meninice que ele tenha tido medo – e ele teria uns dez anos na altura, mais ou menos a idade dos filhos de Marco Bicho, o treinador do Olímpico do Montijo, que ontem choraram quando a polícia começou a disparar para o ar. Mas, felizmente, a sociedade mudou. Se na altura estávamos no auge do autoritarismo do regime salazarista, hoje julgamos ser uma sociedade moderna, na qual ninguém espera andar na rua e ouvir tiros, nem que sejam de prevenção. É por isso que creio que, quando contarem a história aos filhos e aos netos, as crianças que ontem estiveram no Montijo, os filhos de Marco Bicho e os outros, que fugiram para se refugiar nas cabinas da rádio, o farão certamente com uma entoação muito diferente da dada pelo meu pai à história que viveu enquanto petiz no pelado do mítico Campo da Horta da Nora. Fá-lo-ão com uma noção diferente do perigo que correram e com um julgamento a demonstrações de autoridade desproporcionadas, mesmo face à idiotice e à intolerância estúpida que cada vez mais se vê por aí – e não é só no futebol ou no desporto.
O comportamento dos que se envolveram na rixa de ontem no Montijo não foi mais do que a passagem para a realidade da sarjeta, do esgoto e da lixeira a céu aberto que são hoje as redes sociais ou até os programas de debate televisivo feitos sob o pretexto de se discutir o futebol. O insulto é a moeda corrente de gente que não percebe que há coisas nas quais as derrotas por falta de comparência são as verdadeiras vitórias e que é o recuo e não o ir para cima do outro com tudo que garante os três pontos. E se muitas vezes dizemos que a cobardia domina esse tipo de discussão, sobretudo a mantida atrás de um teclado, impedindo quem se digladia de partir para o confronto quando se encontra cara a cara, infelizmente isso nem sempre é verdade e há casos em que o debate gera mesma faísca, como ontem – ou como há quase 70 anos, em Coruche. Eu já recebi muito insulto, muita ameaça física, nas redes sociais, mas felizmente ando de forma tranquila pela rua e por todos os estádios deste país sem nunca ter tido um problema. O pior que me aconteceu foi, antes de uma final da Taça da Portugal, ter o setor de uma claque a entoar o meu nome seguido de alguns impropérios que até me fizeram sorrir ou um cidadão a gritar-me, da bancada, umas horas antes de um jogo, que os meus filhos (e só tenho um) têm “vergonha” de mim – e isso confesso que me incomodou, porque foi durante um direto e eu nem conseguia ouvir-me a pensar.
É inegável que a intolerância tomou conta de uma sociedade organizada por cores, sejam as cores da pele ou as dos clubes de futebol. A questão aqui é a de como se combate isto. Espero, francamente, que todos os envolvidos na rixa de ontem do Montijo tenham sido identificados e, depois de apurada a respetiva responsabilidade, sejam punidos ou ilibados, consoante sejam culpados ou inocentes. Não precisam, seguramente, de ter cartão do adepto para que a sua incapacidade de se comportarem dignamente num estádio seja acompanhada de uma medida restritiva, como a obrigatoriedade de se apresentarem na esquadra de residência sempre que a sua equipa jogar. Espero também que os relatórios do árbitro e dos delegados ao jogo, bem como os vídeos entretanto tornados públicos, sirvam para punir os membros das duas equipas que andaram à traulitada uns aos outros. Quanto à atuação da polícia, não sou especialista em protocolos de segurança, mas a mim pareceu-me mais do que excessiva – foi inaceitável. Sei que a resposta de muita gente a este tipo de situação é a de aumentar o policiamento. Um polícia à porta de cada prédio durante o confinamento para impedir as pessoas de sair, uma dupla em cada rua para impedir os jovens de se concentrarem à noite nas esplanadas, um batalhão em cada campo de futebol onde se joga ao domingo à tarde. Ora se basta fazer contas para perceber que isso seria inviável – imaginam quantos jogos há em Portugal ao domingo à tarde e qual é o potencial de briga até em desafios de infantis? –, isso a mim não me entra até por uma questão de visão da sociedade. Lá está: não somos hoje o Portugal dos anos 50.
Estou atualmente a ver uma série islandesa. Chama-se “Encurralados” e relata a história de uma série de homicídios ocorridos numa vila isolada por um nevão, na qual, por isso, ninguém consegue entrar – reforços policiais, por exemplo – nem sair – o assassino. A dada altura, percebe-se que os três polícias que trabalham na esquadra local não têm sequer uma arma. É ridículo? É. Um pouco. Mas ainda assim parece-me preferível a tê-los a disparar para o ar sempre que for preciso dispersar uma briga de doidos.
É a sociedade em que vimemos.
A falta de civismo e de diálogo tomou conta das pessoas.