Armadilhas de liderança
Rui Borges foi injusto com Harder. Mas, como mostram vários casos de liderança, ninguém pode garantir que a coisa venha a ter efeitos positivos ou negativos. Ou que tenha sido planificada ou aselhice.

Palavras: 1560. Tempo de leitura: 8 minutos (áudio no meu Telegram).
Há uma série de razões válidas e capazes de justificar que um treinador critique publicamente um jogador que tem debaixo das suas ordens. Ninguém saberá melhor do que um líder qual será a resposta de cada um dos seus pupilos à crítica – e há mesmo aqueles que precisam de ser espicaçados para subirem de rendimento. Ninguém estará em melhor posição do que um comandante para perceber de que maneira o grupo responderá à exposição pública de uma erva daninha. Mas, independentemente de a crítica vir a ter efeitos positivos, negativos ou nulos, há razões que não podem servir de motivação e uma delas é a falta de controlo emocional saída da frustração de um mau resultado e da insistência dos jornalistas na busca de causas que não se quer admitir. E, por mais que Rui Borges possa até depois ter sido capaz de conter danos eventualmente causados no grupo, na conversa que alegadamente teve com Harder, no regresso do Sporting ao trabalho, ontem, a forma como ele falou do dinamarquês depois do empate contra o SC Braga só pode ter saído daí.
Liderar uma equipa de futebol é muito mais do que todos nós achamos que é, porque não é só escolher os melhores onze e definir um sistema de jogo. Isto não é o Football Manager da vida real... Há nuances estratégicas para os jogos, que variam de semana para semana, de adversário para adversário. Há a necessidade de operacionalizar tudo nos treinos, de maneira a fazer evoluir os jogadores. E, no topo de carreira, há sobretudo que gerir um grupo de 25 homens extraordinariamente bem pagos, todos eles convencidos de que são a última bolacha do pacote, com um séquito de ‘chegam’issos’ a tratar-lhes de todas as necessidades e outro de sicofantas a dizer-lhes em permanência que não há estrela que brilhe tanto como a deles, o que dificulta qualquer esforço de condução ao líder. Tudo isto sabendo que é impossível tê-los a todos satisfeitos. Nem a onze, sequer – que mesmo aqueles que jogam de início e depois são substituídos acharão que quem devia ter saído era o parceiro do lado. Perante a realidade, a primeira tarefa de um treinador é essa, é a de ser líder, uma espécie de pai que ao mesmo tempo que é amigo não deixa de ser a personificação da exigência, um irmão mais velho capaz de tirar de cada um o máximo.
Quando um treinador pega num grupo de jogadores, a primeira coisa que tem de fazer para vir a ter sucesso é ganhar-lhes a confiança, mobilizá-los para uma causa comum. E não vale de nada virem aqui dizer que eles são tão bem pagos que a obrigação deles é darem sempre o máximo. É verdade. Mas do que vos falo é de mobilização inconsciente, da capacidade para levar cada um deles a superar aquilo que o próprio acha que é capaz de fazer em nome do bem comum. Esse terá sido, pelo menos visto de fora, o maior mérito de Rui Borges à chegada ao Sporting. Percebia-se na forma como interagia com os jogadores, sobretudo depois do fim dos jogos, que eles olhavam para ele e o viam como mais um, seja porque ele tinha tido essa capacidade para os mobilizar ou porque celebravam o afastamento da equipa técnica anterior, que ao que se diz era bem mais professoral e causara danos num grupo habituado à liderança mais próxima de Ruben Amorim. Rui Borges pode ter muitos defeitos – e, conforme já aqui defendi, um deles, ainda à espera de confirmação, será uma visão mais tacanha e pequenina do que pode fazer este grupo –, mas não parece, de todo, ser mau líder. O que não quer dizer que tenha estado bem na forma como falou de Harder.
A liderança pode ganhar-se de várias formas. Peguemos em Mourinho, talvez o exemplo mais estudado, a ponto de ter motivado um excelente livro, de Luís Lourenço e Fernando Ilharco – “Liderança, as lições de Mourinho”, edição Booknomics, 2007. Quando, ainda no Benfica, José Mourinho destruiu o egípcio Sabry numa conferência de imprensa tinha plena consciência do que estava a dizer. Levava notas, até. A coisa foi toda ela planeada para provocar um efeito no grupo, para passar a mensagem de que quem não se esforçava não tinha chances. Quando, ao fim de uns meses de FC Porto, entrou em conflito interno com Vítor Baía, levando mesmo à suspensão do guarda-redes, tinha perfeita consciência do que estava a fazer: a ideia seria a de afirmar a sua autoridade, apontando diretamente à cabeça de um dos líderes de balneário, mas recuperando-o e deixando-lhe sempre a certeza de que assim que voltasse contaria com ele como titular. Quando, já no Tottenham, Mourinho apertou repetidamente com Delle Alli, em vídeos que ambos sabiam que iam ser públicos, no documentário “All Or Nothing”, estava a fazer o que entendia possível para salvar o jogador e dele extrair rendimento – e aqui perdeu a aposta. Perante a exigência de liderança, há vários tipos de aproximação. Há a aproximação mais cautelosa, dos treinadores que se reduzem à banalização do discurso e nunca dizem que sim nem que não. Esta escola equivale a abdicar do poder da comunicação pública. Há, depois, esta aproximação que entende que o discurso público é uma arma e, dentro dela, diferentes formas de a utilizar. A aparentemente mais bruta mas ao mesmo tempo calculista e estudada, que foi aperfeiçoada por Mourinho, mas também a aparentemente mais simpática, toda ela feita de sorrisos e verdades escolhidas, mas igualmente calculista e estudada, em que veio a especializar-se Ruben Amorim, por exemplo. E há casos, como aquele em que esta semana se envolveu Pep Guardiola, a propósito de Matheus Nunes, que é um misto das duas, agitando a cenoura que é dizer que ele pode ser um bom lateral direito, mas batendo com o pau quando diz que nunca vai ser médio de topo, porque não é “suficientemente inteligente” para jogar ali.
Depois, há casos épicos de pisões na bola, nascidos da incapacidade de lidar com a pressão. Pal Csernai, por exemplo, tão habituado estava ao rigor germânico e tão insensível era a uma liderança mais próxima e humana, começou a perder o balneário do Benfica, em 1984, logo ao quarto jogo oficial da época, um 2-3 com o Estrela Vermelha, em Belgrado, após o qual acusou publicamente o defesa lateral Álvaro de ter sido “o pai da derrota”. Foi um primeiro episódio de uma saga depois vista em sequela no caso Vlachodimos, quando o alemão Roger Schmidt apontou o dedo ao guarda-redes grego no seguimento de uma derrota no Bessa, com o Boavista, pelos mesmos 3-2, em 2023. O grego nunca mais jogou pelo Benfica, aliás acabou por sair no mercado desse mês de Agosto – e quem sabe se não era já essa a intenção do treinador –, mas o grupo nunca mais se recompôs e o Benfica perdeu o campeonato. Podemos achar que o gesticular cheio de vernáculo de Bruno Lage para a roda de jogadores no fim de alguns dos jogos do Benfica, esta época, é uma espécie de ‘overkill’, mas a coisa tem funcionado. Tal como podemos atribuir as palavras de Pal Csernai ao desconhecimento da realidade latina e as de Roger Schmidt à vontade de abrir caminho à sua verdadeira aposta, que era Trubin, apenas para mais tarde concluirmos que num e noutro caso ambos viram a vida correr-lhes mal. Mas o que há a perceber aqui é que não é possível decretar à partida para que lado a bola acabará por pinchar a não ser que se conheçam as dinâmicas de cada um dos grupos.
Frustrado com o empate cedido em cima da hora frente ao SC Braga e com a perda do primeiro lugar da Liga para o Benfica, Rui Borges cedeu à pressão, não reconheceu erros próprios – seja porque entende que não tem que estar a dar justificações, como disse, ou porque acha que não são erros – e acabou por apontar a quem menos merecia, que era Harder. É evidente para todos que Harder devia ter tido mais minutos em campo nos últimos tempos, seja ao lado de Gyökeres ou em susasubstituição, para o preservar e tentar impedir apagamentos como o que o sueco mostrou na segunda parte de segunda-feira, eventualmente fatigado por ter feito os 90 minutos a top na quinta, contra o Rio Ave. Nos últimos seis desafios em que foi titular (com o Bolonha FC, Farense, FC Porto, Gil Vicente e nas duas partidas com o Borussia Dortmund), Harder somou três golos e duas assistências. Todos concordaremos que não tem na equipa o efeito que tem Gyökeres, mas certamente pode ser-lhe dada mais alguma utilidade do que ele tem tido desde o início de Março, período em que, em seis jogos, totalizou um total de 33 minutos. Dizer, como disse Rui Borges, que nestes desafios o avançado tem sido “trapalhão” e “não tem dado muito à equipa” é, acima de tudo, injusto. Depois, se vai ter efeitos negativos na equipa, isso, meus amigos, ninguém pode dizer. É esperar para ver.
Não dê esta crónica como garantida
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Acima de tudo, RB mostrou ser pouco inteligente. Está muito longe de possuir a cabecinha de um Mourinho ou de um Guardiola, aquilo sobre o Harder saiu-lhe espontaneamente...e está o caldo entornado. Qual será mesmo o efeito, é como o António Tadeia diz, logo se verá !! Mas não é um bom sinal para o futuro !