A teoria do revoltado
Quando, há oito anos, enunciei a teoria do remediado, enquadrei-a na perspetiva de quem aceitava o erro que não o levava para lá do limiar da perda. Com a redução de vagas na Champions, o foco muda.
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As reações dos jogadores, treinadores e dirigentes do FC Porto à arbitragem de António Nobre e Tiago Martins (VAR) no jogo com o Estoril, primeiro de absoluto e lamentável descontrolo, e depois de concertação coletiva, numa publicação crítica no Instagram, vieram recuperar em todo o esplendor a “teoria do remediado”, que enunciei aqui, em Abril de 2016, quando ainda assinava uma crónica semanal no Diário de Notícias. Ao fim de oito anos, Portugal voltou a perder a terceira vaga na Champions, pelo que estamos todos a ser confrontados com nova alteração do limiar da aceitação do insucesso desportivo. O FC Porto que viu no Estoril fugir um pouco mais o sonho de alcançar os dois da frente – e a Liga dos Campeões – é o mesmo que em Dezembro de 2012, em Setúbal, a caminho do tricampeonato de Villas-Boas e, depois, Vítor Pereira, em momento de euforia e em resposta às queixas permanentes do Benfica, via o seu presidente, Jorge Nuno Pinto da Costa, dizer que “falar de árbitros, além de ridículo, é estúpido”.
Não vou tão longe. Mas não abdico da tese, que se aplica a todos os clubes. Ela baseia-se na ideia de que os árbitros erram, que vão errando, ora para um lado, ora para o outro, e que as únicas coisas que mudam são o resultado final, as benesses que ele distribui e a capacidade de encaixe por elas definida. Se o resultado é bom, festeja-se, às vezes até com umas bicadas ao rival, como as dadas por Luís Filipe Vieira, na altura presidente do Benfica, quando, ia a sua equipa lançada para o título que perdeu no golo de Kelvin, no Dragão, perante as queixas dos azuis e brancos citou (ainda que de uma forma não rigorosa) Pinto da Costa, dizendo que este afirmara que “só os burros é que falam de arbitragem”. Ora um burro é um burro, um estúpido é um estúpido e os dois até já são amigos outra vez, pelo que já nem se devem lembrar... Quando o resultado é aceitável, quando não se ganha mas apesar de tudo se chega aos milhões da UEFA, que tão importantes se revelam para fazer bater certo as colunas de receita e despesa no relatório e contas, vestem-se as roupas do remediado. Quando o resultado é mau e se fica fora da Champions, só pode ser porque há uma cabala contra nós, porque os árbitros só erram num sentido – o de nos prejudicar –, os analistas especializados silenciam esta vergonha e até as instituições (Liga, FPF, APAF) estão tão envenenadas que nem sequer vale a pena recorrer a elas.
Mas passemos então do geral ao particular. O que aconteceu na Amoreira, no sábado, foi absolutamente inaceitável – e não, não estou a referir-me à arbitragem de António Nobre e à atuação de Tiago Martins como VAR. Estes cometeram erros, sim, mas para os dois lados. Em relação ao lance mais contestado pelos portistas, o da reversão do penalti assinalado por falta de Mangala sobre Conceição, não havendo unanimidade, há uma maioria de especialistas a dizer que ele foi bem revertido. Eu não daria penalti – como não dei o de Pius sobre Di María ou o de Fonseca sobre Trincão, nas edições do FDV Flash que fiz dos jogos do Benfica e do Sporting – e quando muito posso vir a conceder que o lance, sendo discutível, do domínio da interpretação, não é assim tão claro e óbvio a ponto de justificar uma reversão e que poderia valer a visão do árbitro de campo. Mas é claro e óbvio que Francisco Conceição tinha de ter sido expulso com vermelho direto pelo que chamou ao árbitro quando este lhe mostrou um amarelo, que Otávio tinha de ter sido expulso quando pontapeou Fabrício, que a assembleia de jogadores a baterem palmas ao árbitro depois do segundo amarelo a Conceição é indigna e não devia passar sem punição e que Wendell devia também ter sido expulso pelo empurrão que deu no árbitro auxiliar depois do final da partida.
Visto daqui, o que vale a pena discutir, porém, não são os erros. Basta ver a forma como eles são encarados pelos diferentes lados da barricada para perceber que isso é perda de tempo. Face ao que acabo de escrever, há boas possibilidades de o leitor concordar, como também as há de achar que estou feito com a máfia da capital, a tal cuja existência levou o FC Porto a pedir uma audiência à sua associação regional e não às entidades nacionais, ou de julgar que estou a ser brando com o comportamento arruaceiro dos dragões. Essa é outra teoria, a teoria do triângulo, que nem é para aqui chamada mas que já expliquei nesta edição do Futebol de Verdade. Este campeonato já teve erros arbitrais a beneficiar e a prejudicar qualquer um dos candidatos ao título – e quem quiser fazer contabilidades é só dar-se ao trabalho de ver todas as edições do Flash. Esta tentativa de mascarar fragilidades próprias com os erros dos outros não é exclusivo nosso – veja-se o exercício lamentável de condicionamento que tem vindo a ser feito, por exemplo, pela Real Madrid TV em Espanha, esta época –, mas é ela que merece a pena ser discutida, porque é em função da sua incorporação por parte das equipas que estas depois respondem melhor ou pior às vicissitudes da competição. Muito se gozou com o “cada um assina” que alguns dos jogadores do plantel do FC Porto se esqueceram de apagar no texto do comunicado conjunto que publicaram no Instagram acerca das incidências do Estoril, mas se há coisa de que não duvido é que aquele não era um exercício plástico, que todos sentem na pele a revolta que expressaram ali. E isso, por muito que possa parecer o contrário, é que é o verdadeiro problema.
Não estou em condições de dizer se, na década de 70, Pinto da Costa e Pedroto tinham razão quando falavam do prejuízo constante em nome do qual nasceu a ideia de revolta do FC Porto contra o centralismo lisboeta. Dos “roubos de catedral” a que aludia o treinador. Não estou eu nem está ninguém, porque as memórias de então serão necessariamente condicionadas pela mesma preferência clubística que agora leva os que se centram nos erros dos árbitros a ver só os que desfavorecem as suas cores e a fechar os olhos aos que vêm em sentido inverso. Vejam eles as coisas com óculos azuis, verdes ou vermelhos. Mas posso garantir-vos que o descontrolo patenteado pela equipa do FC Porto quando, aos 57 minutos de um jogo que até então ainda não tinha feito grande coisa para vencer, sentiu que uma decisão do árbitro lhe era desfavorável está ligado a essa convicção de que nem vale a pena lutar, porque o sistema está contra ela. É a mesma crença limitadora que levou Francisco Conceição a dizer, após a estreia na seleção, que os incidentes vividos pelo pai e pelo irmão em Espanha se devem ao apelido que têm no cartão de cidadão ou que o levou a apontar para o nome nas costas e a inflamar as bancadas quando finalmente Nobre o expulsou, no Estoril, com um segundo amarelo.
Não sei o que são os erros “levianos” a que alude o comunicado dos jogadores do FC Porto, o que separa um eventual erro de um árbitro da forma arriscada como Otávio atrasou a bola que levou à expulsão de Diogo Costa no Estoril, do modo displicente como Di María marcou o primeiro penalti do Benfica contra o GD Chaves ou da maneira trapalhona como Israel socou para o poste da sua própria baliza um canto que deu o golo do Estrela da Amadora. Mas sei que uma das formas de chegar ao sucesso é ser capaz de superar esses erros – os dos árbitros e os próprios. E isso, de tanto fazer chegar ao balneário a ideia do “contra tudo e contra todos”, seja por razões que já se entranharam na ideia de clube ou simplesmente por necessidade de pré-campanha eleitoral, é o que o FC Porto não tem sido capaz de fazer esta época. Quando o foco deixa de ser fazer as coisas bem para passar a ser explicar com a atuação dos outros por que razão se fazem as coisas mal, é porque algo deixou de funcionar. E é isso que é urgente resolver.
O mesmo Porto do mesmo Presidente, que esteve envolvido nas confusões do Apito Dourado, cujos áudios foram públicos, que exige que lhe seja reconhecido mérito e se esconde por trás da decisão de nulidade das provas, que todos vimos, muda todo o discurso quando perde, porque aí já pode clamar ser vitima.
Não vai haver FDV para o Estoril/FCP ? Poderia sugerir um título? "Que fofinhos Alice no país dos pesadelos."