Proença como Salomão
Pedro Proença regozijou-se com a competitividade da Liga Portuguesa, mas não sublinhou que ela não é conseguida à custa da melhoria dos pequenos. E lança o debate que nos levará a ter de escolher.
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O ponto de equilíbrio perfeito na gestão do futebol profissional de alto nível é uma espécie de utopia e isso está perfeitamente à vista nas diferentes camadas do jogo de clubes por essa Europa fora. No dia em que teve Aleksandr Çeferin, o presidente da UEFA, e Nasser El-Khelaifi, líder do PSG e da Associação Europeia de Clubes, a falar por videochamada a uma plateia de comandantes dos nossos emblemas de maior expressão, Pedro Proença foi confrontado com o problema salomónico de que se faz o caminho do futebol nacional. Por um lado, regozijo por uma Liga que ele próprio definiu como “altamente competitiva”. Por outro, a constatação de que continuamos longe da França e dos Países Baixos e a sentir a aproximação da Bélgica no ranking. Por fim, a noção de que para trabalhar a segunda vertente pode precisar de abraçar medidas conflituantes como a distribuição mais racional da receita através da centralização dos direitos audiovisuais ou a proteção aos clubes mais fortes no plano interno para que eles possam pontuar com mais facilidade lá fora.
Não deixa de ser curioso que a 12ª Cimeira de Presidentes, que ontem teve lugar em Coimbra, tenha decorrido precisamente antes do arranque da fase decisiva de uma Liga que é quase um achado em termos europeus. Nas Ligas mais fortes do que a nossa, só a inglesa se compara – e não em todos os aspetos. Sporting e Benfica vão arrancar amanhã para as derradeiras oito jornadas – nove no caso dos leões, que têm em atraso o jogo de Famalicão – separados por apenas um ponto, margem que já quase nem se usa no futebol de mais alto nível. É verdade que os ingleses têm um ponto entre os três da frente (Arsenal, Liverpool FC e Manchester City), mas depois aquilo a que o dinheiro levou foi a uma clarificação absurda das hierarquias um pouco por todo o lado, seja pela eternização dos campeões ou pelo abrandamento interno em favor de objetivos mais alcançáveis, no caso de equipas que percebem que não vão ganhar as Ligas e só se preocupam em conseguir uma presença na próxima Champions. O Real Madrid segue oito pontos à frente do FC Barcelona em Espanha, o Leverkusen soma dez de avanço do Bayern Munique na Alemanha, os mesmos que já tem o PSV Eindhoven em relação ao Feyenoord nos Países Baixos, o Paris Saint Germain já agregou doze a mais que o Stade Brest em França e em Itália o Inter já vai uns bons 14 à frente do Milan.
Quer isto dizer que nas sete melhores Ligas da Europa, só a nossa e a inglesa ainda apresentam alguma indefinição em relação à escolha do campeão – e a nossa tem a vantagem de ter tudo embrulhado no fim da tabela também, enquanto que em Inglaterra o Burnley FC e o Sheffield United já encomendaram a alma ao criador e se preparam para voltar ao Championship e à absurda quebra de receita que isso implica. Esta competitividade, que é um caso de estudo no futebol de mais alto nível, onde o dinheiro conta, é igualmente um argumento a favor do interesse da Liga Portuguesa, mas seria um erro apresentá-la como um triunfo do tratamento igual dado a todos os competidores. Quando, há um par de dias, na gala de “O Gaiense”, o mesmo Pedro Proença foi confrontado com as medidas de proteção que a Liga francesa vai proporcionar ao Olympique Marselha, adiando-lhe o jogo com o OGC Nice, que devia realizar-se entre as duas partidas da Liga Europa contra o Benfica, no fim-de-semana em que as águias receberão o Moreirense, não respondeu que a Liga Portuguesa optara por não adiar esse jogo por uma questão de princípio ou por defender o tratamento igual a todos os participantes nas suas provas. Disse, sim, que falara com o Benfica e que os encarnados é que não tinham visto esse adiamento como necessário.
Na verdade, a competitividade do futebol português não está relacionada com a diminuição da diferença entre grandes e pequenos. O Sporting perdeu apenas 13,3 por cento dos pontos que já disputou nesta Liga, valor que deixa os leões a meio de uma tabela imaginária formada pelos líderes das maiores Ligas. A equipa de Rúben Amorim desperdiçou menos do que o Real Madrid (17,2%), o Arsenal (23,8%) ou o Paris Saint Germain (24,3%), mas mais do que o Inter Milão (12,6%), o Leverkusen (10,2%) ou o PSV Eindhoven (7,7%). E, deixemos agora de parte o caso dos Países Baixos, sabem quais são os países que neste momento lideram o ranking da UEFA para a época de 2023/24, aquele ranking a um ano que vai dar mais duas vagas na Liga dos Campeões da próxima temporada? Pois são a Itália e a Alemanha, para já em condições de impedir a entrada de uma quinta equipa inglesa na competição dos milhões e de serem elas a assegurar mais uma fatia do bolo distribuído pela UEFA. Como em tudo o que é futebol, haverá quem vos diga que o segredo é distribuir o dinheiro igualitariamente e recusar dar aos grandes proteção de calendário, de forma a que eles a possam juntar à que já têm por terem os cofres mais recheados – e por isso poderem contratar mais e melhores jogadores para rodar. Mas também haverá quem vos diga o inverso, que dar mais dinheiro aos pequenos é um desperdício, que eles depois torram tudo em rebuçados e ainda estragam os dentes, e que temos é de proteger os grandes para eles continuarem a ser minimamente competitivos lá fora.
Aqui chegados, o que vos digo é que não tenho certezas, mas tenho convicções e princípios – que neste contexto não são a mesma coisa. Estou convencido de que, mais ano menos ano, o paradigma continental vai substituir o nacional na nossa forma de olhar para o futebol e que isso nos conduzirá mesmo à SuperLiga que a ECA e a UEFA agora não querem – ou não querem a não ser que sejam elas a controlar. E, por princípio moral, não gosto de ver uma distribuição tão desigual como a nossa da receita de uma competição que precisa de todos para se manter viva. A tirania dos três grandes, que é um flagelo sociológico e demográfico antes de ser um problema desportivo e económico, não se resolve numa ou em duas gerações. Precisará, se calhar, de um século a trabalhar em cima da ideia de que são os resultados a chamar adeptos e não o inverso. É por isso que mesmo o mais pragmático entre vós deve ser capaz de envergar as vestes do Rei Salomão atualmente usadas por Pedro Proença e, ao contrário do que ele tem feito, procurando o equilíbrio no fio da navalha, inclinar a decisão para um ou outro lado em função da resposta a uma pergunta simples: o que queremos para a nossa Liga? Queremos que ela seja um entretém para dois ou três clubes – infelizmente creio que não vai chegar para três... – que agora se batem com as equipas de segunda linha das Ligas principais, na esperança de que voltem um dia a competir com os maiores se lhes dermos mais dinheiro e os protegermos? Ou assumimos que é ela que nos ocupa 34 dos 52 fins-de-semana do ano e queremos que ela se torne mesmo interessante, dotando aqueles que os desafiam de meios para o fazerem de forma mais sólida?
Não creio que dê para as duas coisas. Mas a escolha é cada vez mais urgente, que as duas carruagens estão a chegar à estação e se hesitamos muito corremos o risco de não entrar numa nem na outra.