A normalização do excesso
Ninguém pode estipular se Sérgio Conceição agrediu ou foi agredido na altercação com o autarca de Cartaya, mas há uma coisa evidente: mais sendo quem é, não pode ir contestar o árbitro dos... sub9.
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Há personalidades que são tão mediáticas que podem carregar às costas o peso de uma causa. Fiquei a pensar nisso quando vi as imagens de Vinícius Júnior em lágrimas, a falar do racismo que tem sentido na pele no futebol espanhol, em antecipação ao Espanha-Brasil de hoje. E a coisa já me tinha ocorrido antes, quando, depois de ter sido surpreendido por um de vós em pleno Futebol de Verdade com a notícia da altercação entre Sérgio Conceição e o autarca de Cartaya por causa do árbitro de um jogo de sub9 (!), fiz mentalmente um rápido flashback aos muitos atos de selvajaria acerca dos quais já li a propósito de jogos de miúdos e ao que pude também ouvir por muitos campos do país enquanto pai de um rapaz de começou a jogar rugby federado aos oito anos.
Não posso, como é evidente – e mesmo assim é contrariado por gente que devia ser muito mais responsável e desde logo escolheu um lado – estabelecer se, acompanhado por um dos seus filhos, Sérgio Conceição agrediu ou insultou o árbitro do jogo do seu rebento mais jovem ou o autarca que ao trio se dirigiu. Da mesma forma não consigo assegurar se o que o espanhol queria era apenas proteger o juiz da carga de adeptos contestatários ou deixar-nos a sua interpretação do “Ppppresidente da junta” do Herman José, interpelando os portugueses de forma agressiva, por ter percebido quem eles eram. Mais: estive em torneios suficientes de sub10 e sub12 para saber que mesmo aquela ideia de que Sérgio Conceição invadiu o campo é facilmente contrariável. Porque, na verdade, o campo que vemos no vídeo posto a circular não é o campo: há uma série de mini-campos dentro do relvado, que os miúdos não jogam a campo inteiro, e, ainda que isto possa ser mais vulgar no rugby do que no futebol, desporto em que as equipas já dispõem de treinadores e auxiliares suficientes para que tal não seja tão necessário, os pais circulam por ali, sobretudo para verificar se os filhos precisam de alguma coisa entre jogos. Ainda que não se observem mais pais nas imagens, o que é bizarro, e que por lá só apareça gente com credencial pendurada ao pescoço, essa questão ainda a vejo com alguma normalidade.
Mas é aqui que acaba a parte defensável. Porque em nenhuma circunstância é aceitável que o pai de um jogador vá interpelar um árbitro e muito menos que lhe toque, como fez Sérgio Conceição, que é visível nas imagens que o treinador do FC Porto colocou a mão na face do juiz – e por muito que me esforçasse não conseguiria encontrar uma justificação válida para tal. É verdade que o árbitro não pareceu muito incomodado, tanto que até se aproximou da confusão que se gerou depois entre o autarca e os Conceição – a tal confusão que não está totalmente documentada e que por isso dá azo a múltiplas interpretações –, mas isso não deve normalizar o ato. Se a contestação a árbitros em desafios de profissionais, a realidade a que estão habituados Sérgio e Moisés Conceição, é um abuso, quando ela acontece num jogo de sub9 já se torna muito para lá de abusiva. É inaceitável. E se acontece por obra e graça de um técnico tão mediático como é Sérgio Conceição, um exemplo de sucesso, tricampeão nacional como treinador e por isso mesmo um modelo para quem vem atrás dele na carreira, tem de ser tratada com uma seriedade que não tenho visto. A começar pelo próprio Sérgio Conceição.
Não creio que Sérgio Conceição deva ser castigado desportivamente, porque não estava ali na condição de agente desportivo. Até acho extraordinário que ele se junte aos pais dos outros meninos que jogam com o seu filho José para os ver da bancada. Aí se vê o Conceição solidário, amigo do seu amigo, o tipo que não tem nada a mania desde os tempos de futebolista. Já lido com ele há anos suficientes para saber que ele é assim. Mas nem por isso Conceição poderá esquecer que tem responsabilidades, que é a face mediática daquela bancada em que está a ver os meninos a jogar futebol e que, por isso mesmo, era quem menos podia dirigir-se ao árbitro, nem que o fizesse em representação de um grupo de pais que o mandatara para – o que é extraordinário – contestar a não marcação de um penalti e a validação de um golo em fora-de-jogo. Porque ele, tal como Vinícius Júnior, é sempre notícia. Se Conceição se irrita, isso é notícia, da mesma forma que se Vinícius Júnior chora, isso é notícia. E se as lágrimas do astro brasileiro podem ser utilizadas por uma boa causa, a de se perceber que as vítimas de racismo sofrem com a atrasadice mental dos que imitam os gritos dos macacos para as arreliar, seja por convicção ou só para tirar vantagem desportiva do ato, a irritação de Conceição também pode ser utilizável para normalizar o excesso, para banalizar o ato de interpelação abusiva ao árbitro.
Já todos fomos confrontados com casos de agressões bárbaras a árbitros, casos que deixam sequelas físicas e mentais, muitos deles em jogos de formação. Não terá sido esse o caso da Gañafote Cup. Mas este caso tem uma agravante: abre caminho a imitações. E é por isso que serve de pouco que venhamos todos aqui falar dele, uns a dizer que Conceição é um corrécio e outros a argumentar que lhe fizeram mais um assassinato de caráter. Isso, francamente, é o que menos me interessa neste momento, porque há muito já desisti de evangelizar fanáticos. Podem ficar, cada um na sua trincheira, a defender o indefensável. O que digo é que este caso precisa de ser tratado na primeira pessoa do singular, como foi o de Vinícius Júnior quando assumiu que ia identificar quem o insultava no tristemente célebre jogo de Valência e chorou ontem, a falar do tema. Devia ser Sérgio Conceição a reconhecer que se excedeu e a mostrar arrependimento, para que um dia não se ouça da boca de alguém que infelizmente acabe por ir mais longe do que ele foi a argumentar que só estava a fazer aquilo que vira ao seu ídolo, porque o árbitro tinha transformado um pontapé de baliza num pontapé de canto ou não vira um lançamento lateral executado fora do local.
Que fofinho, vamos chamar-lhe "A Alice no país das Maravilhas"