A nova ordem em jogo
Quando Paris Saint-Germain e Bayern se defrontarem, hoje, no regresso da Champions, o que está em jogo é o confronto entre a nova e a velha ordem das coisas. E tudo dependerá da bola.
Hoje volta a Liga dos Campeões, com um sensacional Paris Saint Germain-Bayern Munique, mas enquanto a bola não rola, enquanto não se percebe se a “recuperação milagrosa” de Mbappé não é apenas bluff, muita da atenção internacional virou-se para a prometida oferta de compra catari pelo Manchester United, que também entrará em campo na quinta-feira num jogo de Liga Europa com o FC Barcelona que mais parecerá uma partida de Champions, tendo em conta a grande evolução das duas equipas desde a data do sorteio. Descansam-nos os mais crédulos, que quem está a oferecer 5,6 mil milhões de euros pelas ações do United à família Glazer não é o Qatar Sports Investment, que é dono do PSG e até de parte do SC Braga, por exemplo, mas sim a Qatar Investment Authority, que ainda não tem interesse na matéria. É um fraco consolo, porque na verdade ambos dependem de um mesmo homem, o emir Tamim bin-Hamad Al-Thani, o homem cujo rosto enche murais em Doha, o homem cujo retrato é omnipresente na receção de qualquer hotel qatari, e que festejou pessoalmente no relvado com Messi a conquista do Mundial por parte da Argentina. O emir, provavelmente o único dos soberanos do médio oriente que alia o poder financeiro a uma paixão genuina por futebol, até pode vir a ganhar as duas principais provas da UEFA, uma através do clube francês e a outra do gigante inglês, mas o seu alto funcionário Nasser Al-Khelaifi, presidente do QSI e do PSG, não terá nada que ver com o Manchester United, da mesma forma que Mansoor Ebrahim Al-Mahmmoud, o CEO da QIA, que poderá vir a assumir responsabilidades no United, não terá nada que ver com o Paris Saint-Germain. Depois, a seguir ao verão, se ambos os clubes estiverem na Liga dos Campeões, se verá como a UEFA descalça a bota, sendo que é uma daquelas compridas, apertadas e complicadas de descalçar face à legislação comercial internacional. Este é o fim do futebol como o conhecemos e não, não é só se os dois clubes se defrontarem na mesma competição: basta que se tornem parceiros estratégicos em defesa do interesse nacional qatari ou até dos humores do emir Al-Thani. E só há uma coisa que me espanta: como é que isto demorou tanto tempo a acontecer.
Nova ou velha ordem. Antes, há esse grande choque de mais logo, no Parque dos Príncipes, um estádio que está a tornar-se pequeno para a procura e que tem feito maravilhas à carteira dos especuladores e candongueiros. Dificilmente haverá Mbappé, por mais milagrosa que tenha sido a recuperação de uma lesão que, em condições normais, poderia afastá-lo até do jogo da segunda mão, mas ainda assim há Messi e Neymar como símbolos dessa nova ordem, dos grandes investidores. Contra eles apresenta-se a velha ordem, um clube tradicional, vindo de uma realidade – a Bundesliga – onde não é permitida a compra de emblemas por parte do grande capital, mas de um mercado tão vasto que atrai na mesma investimentos capazes de assegurar craques internacionais. Em jogo estará a enésima tentativa dos bilionários do PSG chegarem a um grande troféu, de ganharem o pedigree que não se compra diretamente, mas ao mesmo tempo a vontade dos defensores do antigo regime provarem que a Bundesliga não tem necessariamente de ceder à modernidade, à alienação do capital, para continuar a ser internacionalmente competitiva – a competitividade nacional é outra conversa. E não deixa de ser interessante que esta luta entre a nova e a velha ordem se jogue também muito nos confrontos entre Cancelo e Nuno Mendes, entre Danilo e Musiala, entre Messi e Upamecano, entre Hakimi e Davies. É sempre a bola que decide.
Outra vez as instituições. Há dois entendimentos possíveis para o caso-Paulinho, sucedâneo do caso-Pepe, que por sua vez tinha sido o seguimento do caso-Palhinha. Uma é a de que se trata de uma “chico-espertice”, aproveitada pelos clubes para evitarem cumprir castigos ou pelo menos para escolherem criteriosamente o momento de os cumprir. É uma interpretação legítima. A outra é a de que os futebolistas não são menos cidadãos do que quaisquer outros e, portanto, têm o mesmo direito constitucional à defesa do que qualquer um de nós quando são sujeitos a processos disciplinares. E essa também é uma interpretação legítima. A questão é que aqui não estamos a discutir o estado de direito, a democracia portuguesa ou os nossos direitos básicos enquanto cidadãos. Estamos a discutir a adequação à realidade das regras de uma competição organizada por uma associação privada, que é a Liga, que mais não é do que a soma dos clubes, que são quem depois contesta essas mesmas regras – por mais que sejam os jogadores, assalariados desses clubes, a pedir recursos. Ora isso já é, para mim, muito mais difícil de entender, porque tem de ser assacado a um problema grave de falta de confiança nas instituições. Quem pode resolver este problema não é o Presidente da República, não é o Governo, não é a Federação Portuguesa de Futebol, não é a Liga Portugal. São os clubes. São os clubes que formam a Liga, são eles – e as respetivas associações distritais – que fazem a Assembleia Geral da FPF, é deles que partem os mandatos de quem nomeia os órgãos, pelo que é a eles que cabe mais tarde fazer cumprir as orientações destes órgãos emanadas. Se os clubes, ao invés, por manifesta falta de confiança nos órgãos que nomeiam, optam por travar decisões em nome de direitos que são legítimos mas que não deviam ser para ali chamados, é todo o sistema que entra em falência. E isso não é bom.