A Liga morreu no Jamor
A vergonha que foi o B SAD-Benfica afetou muito mais do que a verdade desportiva da competição. Afetou um modelo em que são os clubes quem manda na Liga. A Liga não funciona porque não existe.
O que se passou no sábado à noite, no B SAD-Benfica, no Estádio Nacional, foi uma vergonha inqualificável e por isso interessa-me zero ouvir explicações além das casuísticas, que até me pareceram plausíveis, dadas por Rui Pedro Soares e Rui Costa no final daquele simulacro de jogo. Tal como me interessam zero as reuniões de apuramento de responsabilidades que possam vir a realizar-se entre a Liga, a Direção Geral de Saúde e o Governo. Entendo aqueles que alegam que ali pode ter-se desvirtuado a verdade da competição, mas o problema é bem mais grave e anterior. O que morreu no Jamor não foi a verdade de uma competição em particular. O que morreu no Jamor foi a Liga, foi um modelo de governação que não funciona e com o qual o futebol português nunca seguirá em frente.
O que mais me irritou nas trocas de argumentos de sábado à noite – e quem esteve comigo na RTP sabe como eu estava irritado... – foi que eles pouco mais são do que o prolongamento deste cancro que afeta a competição futebolística em Portugal. Assim que acontece alguma coisa, o país logo se divide com base em interesses parciais e clubísticos. Há os que acham que a culpa é da B SAD, que devia ter pedido o adiamento de um jogo para o qual não estava capacitada, mas não o fez para não perder a receita. Há os que sustentam que a culpa é do Benfica, seja porque entendem que o não pedido de adiamento por parte dos azuis foi apenas um ato de subserviência aos interesses encarnados ou por acharem que, perante a realidade, os jogadores de Jorge Jesus deviam ter sido piedosos, fazendo um par de golos e passando depois a trocar a bola entre eles. Há os que acham que a culpa é da Direção Geral de Saúde e dos diferentes critérios dos seus diferentes delegados regionais, como se a DGS devesse agora servir de árbitro de competições desportivas e fosse obrigada a qualquer espécie de paridade de critérios entre eles. E há os que acham que a culpa é da Liga e de Pedro Proença, como se o presidente da Liga pudesse ser juiz supremo para mandar adiar uns jogos e não outros – e aí renasceria o cancro, com memórias mais uma vez baseadas em interesses parciais, de jogos que não foram adiados e deveriam tê-lo sido, porque também havia jogadores infetados de um ou do outro lado.
Vou até passar por cima de teorias mais rocambolescas – como as que atribuem a culpa ao Governo e ao Secretário de Estado da Juventude e do Desporto e até trazem à baila o cartão do adepto ou as que desvendam uma cabala destinada a infetar os jogadores do Benfica antes de um ciclo decisivo de jogos – para vos dizer que nada disto interessa. A culpa da vergonha do Jamor é dos clubes. De todos. Não só de B SAD e Benfica. No final daquela coisa que a Sport TV transmitiu em direto como se fosse um jogo, Rui Pedro Soares disse uma coisa notável: “Eu tenho vergonha destes regulamentos! Aprovei-os, mas tenho vergonha deles”. Nunca como naquele momento estive tão ao lado do presidente da B SAD. Com duas diferenças. A primeira é que eu não os aprovei. E a segunda, fundamental, é que avisei que isto ia suceder.
Fi-lo aqui, em Janeiro, quando era o Benfica quem se queixava do seu próprio surto de Covid. E já o tinha feito aqui, antes de começar o campeonato anterior, em Setembro de 2020, ainda no meu site antigo, quando disse que era preciso regulamentar e criar critérios objetivos para definir que jogos são adiados e que jogos são mantidos no calendário. Atrevi-me até a sugerir: um clube devia ter o direito a adiar os jogos nos quais a Covid19 o privasse de pelo menos seis “jogadores nucleares”, isto é, que tivessem feito em campo mais de metade dos minutos que a época levasse até então. Porque estas coisas não podem ficar a depender do “bom-senso”, conforme se viu nas comparações que alguns estabeleceram entre a “equipa” que a B SAD apresentou no sábado e a equipa que o Benfica levou ao campo durante o seu próprio surto, no início deste ano de 2021, ou a equipa que o Vitória FC fez alinhar contra o Sporting, no inverno de 2019/20, antes da pandemia, por causa de um surto gripal. O “bom-senso” é uma coisa subjetiva e estes critérios têm de ser objetivos.
Ninguém ligou nenhuma. Os clubes continuaram a reunir nas suas Assembleias Gerais, que é de onde saem regulamentos, e a passar completamente ao lado disto. Agora vêm confundir as coisas e dizer que as regras do jogo são claras: desde que uma equipa tenha sete jogadores, pode haver jogo. Mas uma coisa são as regras do futebol, nas quais não se pode mexer, e outra, bem diferente, é o regulamento da competição. E este, que define, por exemplo, quantas substituições podem fazer-se, depende dos clubes que o fazem nas Assembleias Gerais da Liga – e que deveriam fazê-lo a pensar nos superiores interesses da prova e da sua integridade. Porque, não duvidem nem por um instante de uma coisa. O que aconteceu no Jamor foi mais um prego no caixão da viabilidade financeira e da sustentabilidade de qualquer proposta de expansão internacional da Liga Portuguesa, da qual depende o sucesso ao nível das receitas televisivas, por exemplo. Só me interessa que os jornais internacionais estejam a falar da vergonha do Jamor na medida em que isso levará os seus milhões de leitores a ter menos interesse futuro por um produto cujo sucesso depende do total de clientes que for capaz de angariar a nível planetário. É esse o grande segredo do sucesso da Premier League, por exemplo.
No meio da minha irritação, posso até ter sido injusto com os que vieram alegar que estava ali em causa a verdade desportiva, colocados no mesmo saco dos que vieram tirar desforço por eu alegadamente não ter dito nada quando era o Benfica que tinha jogadores infetados – o que já provei acima ser falso. Porque aquele simulacro de jogo pode ter condicionado a classificação dos melhores marcadores ou ferido de morte um eventual desempate final por diferença de golos – algo tão raro que, nos meus 51 anos, só tivemos um campeão definido por esse critério de desempate, que foi o FC Porto, em 1978.
Sim, é verdade. No Jamor, a verdade desportiva foi afetada. Mas ali morreu algo muito mais importante do que isso, que foi a Liga e o seu modelo de governação.
Há meses, um espectador do Futebol de Verdade comentava numa das emissões do meu direto diário nas redes sociais que “ter os clubes a mandar na Liga é como ter os miúdos a mandar na creche”. Achei a frase tão brilhante que já a repeti mais de um par de vezes. E é um pouco por isso que o presidente da Liga, Pedro Proença, é quem recolhe, para já, mais dedos acusadores de quem quer saber por que se chegou a este ponto. Porque não manda. Para mim, contudo, a única culpa que ele tem é a de não se ter ido ainda embora, quando sabe tão bem como todos os que já pensaram sobre o tema que não é possível governar uma casa em que ninguém quer o bem comum.
Este caso só chegou a este ponto porque os clubes sabem bem que só assim, com este vazio regulamentar, lhes é possível manter esta realidade nefasta em que a culpa morre sempre solteira e em que das sombras se erguem imediatamente poderosos exércitos de defensores de teses parciais, de cujo sucesso podem retirar dividendos competitivos. É aqui que a coisa chega a João Paulo Rebelo e ao Governo, como chega a Fernando Gomes e à Federação Portuguesa de Futebol. A Liga morreu porque este modelo de governação em que quem manda são os clubes não presta. O cancro está aí e está a metastatizar. Haja alguém que lhe ponha um travão!
Creio que a "narrativa" do Benfica da época passada": "a culpa foi da COVID" também desempenhou um papel neste processo. O Benfica não terá "ajudado" a criar uma solução como uma espécie de "ter razão depois do tempo", corroborando, de alguma forma, a sua narrativa da época passada ("Sofremos com isto, os outros também sofrem as consequências disto"). Se fosse outro clube (ou um jogo com muito menos bilhetes vendidos), talvez a solução tivesse sido outra, com muito mais bom senso à mistura.
Os clubes apenas estão preocupados em gerir os seus interesses particulares e nunca pensam no coletivo. Aconteceu agora com o COVID, mas também acontece com o facto de um clube transmitir os seus jogos no seu próprio canal, caso único nas ligas que se dizem credíveis e toda a gente continua a assobiar para o lado. Mas depois quando algo acontece aqui D'El rei que está a chover. Neste caso em particular há uma grande diferença de atuação entre a FPF e a Liga de Clubes, pois nas competições da FPF há jogos adiados por motivos de COVID, desde que haja entendimento entre os clubes.....