Jesus e Rangnick ao espelho
O treinador do Benfica e o novo técnico do Manchester United são como opostos, as duas faces de um espelho em tudo. Da forma de estar e pensar aos títulos.
Jorge Jesus fará 68 anos em Julho e comemora neste fim-de-semana os 600 jogos na I Divisão de Portugal, num B SAD-Benfica que só não junta dois dos clubes que mais lhe dizem porque não é possível estabelecer uma ligação direta entre a atual SAD azul e o histórico Belenenses. Ralf Rangnick é quatro anos mais novo, fará 64 em Junho, não chegou ainda aos 200 jogos de primeira divisão, até parecia já ter desistido das presenças no banco em favor de uma subida aos gabinetes, e está por estes dias a acertar um regresso em grande, como treinador interino do Manchester United. Os dois têm mais em comum do que pode parecer à primeira vista: são defensores de uma ideia de futebol de autor, muitas vezes incompreendidos por quem não é capaz de lhes ler a verdadeira dimensão – que é exatamente a oposta, como se fosse os dois lados de um espelho.
Em entrevista ao jornal A Bola, na edição de hoje, Jorge Jesus volta a recordar Manuel de Oliveira, o treinador que seguiu para vários clubes na carreira de futebolista. “Foi sempre uma grande referência para mim. Foi uma pessoa que me ajudou muito quando era jogador e treinador”, disse o técnico do Benfica. E, contudo, depois, vai-se a ver, e o que ganhou Manuel de Oliveira? Nada. Soma 612 jogos aos comandos de equipas da I Divisão em Portugal, total apenas superado por Fernando Vaz, com zero títulos. Mas foi o criador de uma forma de pensar, estar e trabalhar no futebol que é seguida por Jesus e que vai muito para lá da basófia a que sempre se alude quando se estabelece o paralelo entre os dois. Se Jesus afirma que inventou o quinto momento do jogo ou que criou o sistema de três centrais, no Amora FC, Oliveira morreu convencido de que foi ele que, na CUF, trouxe ao futebol o 4x4x2, importante numa histórica vitória dos barreirenses sobre o Milan, nas provas da UEFA. Mas isso é folclore, porque a ligação entre os dois permitiu a Jesus ser o Oliveira aperfeiçoado e capacitado para ganhar.
Rangnick, por sua vez, é mais importante no futebol de hoje do que prenuncia o quase total vazio de títulos da sua carreira: ganhou somente uma final da Taça da Alemanha e uma Supertaça, pelo Schalke, há uma década, só tendo passado a ser reconhecido quando se tornou a eminência parda por trás do projeto Red Bull (Leipzig, Salzbugo, Nova Iorque...) ou quando os seus discípulos começaram a ganhar no terreno aquilo que ele nunca conseguiu. É que, além de ter dado a Thomas Tuchel o primeiro trabalho como treinador, nas camadas jovens do VfB Estugarda, o novo técnico de Cristiano Ronaldo foi ainda o mentor de Jürgen Klopp e Julian Nagelsmann e o ideólogo do “gegenpressing”, do “futebol heavy-metal” que é a imagem de marca da generalidade dos técnicos alemães de sucesso hoje em dia. Rangnick está para Tuchel e Klopp, dois dos três maiores candidatos a ganhar a Premier League deste ano, como Oliveira estava para Jesus. Ou como Cruijff estava para Pep Guardiola. Estabeleceu, com o seu pensamento, as bases para que eles pudessem ter sucesso.
A questão, agora, é a de perceber se este quase incógnito treinador alemão é capaz, em mais esta oportunidade, de passar todo o seu saber, toda a sua capacidade criativa e ideológica, para o terreno. Porque é aí que Rangnick e Jesus divergem de forma mais absoluta. É claro que não há uma relação inversamente proporcional entre o saber explicar e o saber fazer. Nem no futebol nem em nada na vida. É evidente que o sucesso no banco não depende da incapacidade para expressar a sabedoria ante audiências mais exigentes – ou diferentemente exigentes – do que um grupo de futebolistas profissionais. Ainda assim, a mim, parece-me que aquilo por que os seus maiores detratores mais criticam Jesus – as dificuldades para se expressar, para perceber os momentos em que diz as coisas, o tratamento demasiado perfeccionista e até picuinhas e mal-educado aos jogadores – nunca o inibiu de apresentar resultados. E que talvez seja até aquilo que sempre faltou a Rangnick para conseguir fazer passar para os seus plantéis toda a sabedoria que inegavelmente possui.