A Inglaterra a ser Inglaterra
Há 15 dias, os ingleses vociferavam contra o VAR e reclamavam respeito cultural pela decisão do árbitro de campo. Hoje encorajam quem está frente aos monitores a intervir em caso de “penaltizinhos".
“A Inglaterra a ser Inglaterra”. Foi assim, sem tirar nem pôr, que um dos portugueses que anda pelos círculos de poder do futebol europeu e mundial se me referiu a uma notícia, que aqui comentei há um par de semanas, segundo a qual havia conversações globais para reverter os avanços feitos no futebol pela criação do VAR. Há um par de semanas estávamos no auge da azia de Mikel Arteta, Ange Postecoglu, Jürgen Klopp e Erik Ten Hag, causada por uma série de decisões aconselhadas pelo VAR dos jogos das suas equipas, e o sentimento geral era o de se favorecer o regresso à era das cavernas, de respeito cultural pela decisão do árbitro de campo, mesmo sabendo que quem a tomava era o único que não tinha visto os lances em condições e estava em situação de clara desvantagem face não só aos espectadores confortavelmente instalados no sofá lá de casa com um ecrã gigante e repetições em 4K como até perante os treinadores, que no banco agora estão sempre munidos de tablets para verem os lances com detalhe. A coisa, entretanto, mudou. A Inglaterra foi jogar a Skopje com a Macedónia e veio de lá com um empate, o que já de si é disruptivo. Como assim? A poderosa Inglaterra, que os “pundits” locais nos vendem não só como favorita mas como única opção realista para vencer qualquer competição internacional existente ou até imaginária, não ganhou à 66ª seleção do Mundo, uma seleção que no ranking da FIFA está atrás da Eslováquia e da Bósnia, as equipas fracas que, no entender dos especialistas portugueses, tornaram o nosso grupo um passeio? Sim, foi essa mesma. E a Inglaterra não só empatou como sofreu um golo na recarga de um penalti a que os ingleses chamaram “suave”, assinalado quando Rico Lewis ganhou a bola no ar a Bojan Miovski, mas para saltar tocou com a mão na cara do macedónio. O defesa central inglês Harry Maguire não se conformou. “Marcam-se penaltis por tudo e por nada”, explicou, quando lhe pediram que concretizasse as razões pelas quais considerara a decisão “terrível”. “Devia ser-te permitido defender. Devia ser-te permitido mexer os braços, mexer o corpo. Devia ser-te permitido estabelecer contacto, mexer as mãos para chegar à bola” continuou. “Marcam-se demasiados penaltis suaves hoje em dia”, finalizou Maguire. O tão contestado jogador do Manchester United chamou-lhes “soft penalties”, mas eu prefiro “penaltizinhos”. E concordo. Marcam-se demasiados “penaltizinhos” hoje em dia. Ora, a notícia de hoje é a de que Howard Webb, que muitos recordarão como o árbitro da final do Mundial de 2010 mas que atualmente é o chefe da PGMOL, a Professional Game Match Officials Limited, a entidade que manda na arbitragem da Premier League, por exemplo, também acha. Webb aproveitou a reunião de árbitros mantida esta semana num hotel em Loughborough para falar de “soft penalties” e para encorajar as suas tropas não só a desvalorizar esses contactos mínimos na qualidade de árbitros de campo, como até a intervir, como VAR, se acharem que o contacto não foi suficientemente impactante para ser punido com falta. A primeira parte da questão é pacífica, a segunda é uma revolução, porque vai contra o protocolo, que estipula que o VAR só deve chamar o árbitro de campo ao monitor se estivermos perante um “erro claro e óbvio”. E até aqui o entendimento é que, havendo contacto, a questão da intensidade desse contacto não prefigurava esse tal “erro claro e óbvio”. Não tenho nada contra iniciativas que venham a favorecer um melhor processo de tomada de decisão a não ser a constatação de que, “sabor do mês”, vamos ter mais VAR e não menos VAR, como há um par de semanas tanto queriam os ingleses do alto da sua superioridade cultural-futebolística. O que dizer? É “a Inglaterra a ser Inglaterra”.
O sorteio do Europeu. Já perceberam, pelo que escrevi atrás, que me rio muito com a basófia dos ingleses antes das grandes competições, visível por exemplo nas odds estabelecidas pelas casas de apostas – nas quais o mercado inglês tem sempre um peso extraordinário –, onde, por isso, costuma ser bom negócio ir contra as vitórias de equipas britânicas em geral. Ontem, por causa da importância da entrevista de Pinto da Costa, nem me referi aqui ao fim da fase de qualificação do Europeu 2024 e à relevância que teve, para Portugal, o empate da França na Grécia. A seleção nacional foi, assim, a única a somar por vitórias todos os jogos desta fase de qualificação, onde teve o melhor ataque, com mais sete golos (ainda que fazendo mais dois jogos) do que os franceses, mas também a melhor defesa, com menos um golo encaixado do que a seleção comandada por Didier Deschamps. Somos, então, favoritos? Não creio. Portugal está num lote de mais de uma mão cheia de equipas que pode aspirar a ganhar o Europeu da Alemanha e deve olhar para o sorteio de 2 de Dezembro com cautela, porque a forma como foram escalonados os potes pode bem gerar algum desconforto. Como cabeças-de-série não poderemos calhar no mesmo grupo da Alemanha, que aqui está por ser a organizadora, mas também da França, da Bélgica, da Espanha e da Inglaterra. Depois, tanto pode sair um grupo mais complicado, com Turquia, Holanda e Itália, como um mais simples, com Albânia, Eslováquia e Luxemburgo (se os luxemburgueses se saírem bem do play-off, em que terão por adversários Geórgia, Grécia e Cazaquistão por uma vaga na fase final). A ideia é a de que a fase de grupos será sempre uma formalidade, até porque quatro dos seis terceiros classificados vão apurar-se para os oitavos-de-final. Mas há formalidades mais fáceis de cumprir do que outras.
Scaloni, Milei e Tapia. Está muito gira a fase de qualificação sul-americana para o Mundial de 2026. Bielsa montou um Uruguai de autor, capaz por exemplo de ganhar na Argentina com um show de solidez e agressividade defensiva e de ataques rápidos, mas os argentinos não se ficaram e foram ao Maracanã vencer o Brasil, num jogo antecedido de cenas lamentáveis de violência, onde acabou por se impor um belíssimo cabeceamento de Otamendi. Ancelotti, se acabar mesmo por ir parar ao Escrete, vai ter pano para mangas, que a equipa vem de três derrotas seguidas, com Uruguai, Colômbia e Argentina e terá de lutar pela qualificação – ainda que faltem doze jornadas e não seja sequer imaginável que os brasileiros fiquem fora quando se apuram seis das dez equipas participantes e a sétima ainda terá o play-off como forma de entrar com calçadeira. A notícia da última ronda de jogos foi, por isso, o anúncio feito por Lionel Scaloni, o selecionador campeão do Mundo, que vai entrar em período sabático “de reflexão”, aproveitando o facto de só haver competição em Junho, com a Copa América. A ligação imediata mais vezes feita é ao que o treinador julgará ser a falta de apetite ganhador de uma equipa veterana – oito dos 16 utilizados no Maracanã terão em Junho pelo menos 30 anos – que nos últimos tempos ganhou a Copa América e o Mundial. Mas há quem explique o caso com a decisão de Claudio Tapia, presidente da Associação de Futebol Argentino, apoiar Sergio Massa, o candidato derrotado no domingo pelo ultraliberal Javier Milei nas eleições presidenciais. Com uma geração de jogadores a aproximar-se do ocaso e a revolução à vista num futebol que, com o impulso de Milei, vai seguramente avançar no sentido da entrada das sociedades anónimas, a Argentina vai viver tempos conturbados. Scaloni, como vencedor, vai esperar, sem risco. Esperávamos mais.