O milagre dos capitais
Pinto da Costa desvalorizou os incidentes da AG, menosprezou a hipótese de ter de enfrentar Villas-Boas e deixou entender que pode ser candidato. Como arma quer apresentar uma recuperação milagrosa.
Aos 85 anos, Pinto da Costa não perdeu aquele dom de dizer coisas que toda a gente sabe e de as transformar em acontecimentos pela entoação ou pela forma. Ouvir o presidente do FC Porto em entrevista é uma canseira de busca do que está lá sem ter sido dito – mas esse não foi, em exclusivo, o caso da conversa que ele manteve na SIC ontem à noite. É claro que o veterano dirigente deixou vários subentendidos, nem seria ele se o não fizesse, e que uma das quase certezas é a de que vai mesmo apresentar-se como candidato a mais um mandato nas eleições de Abril. Mas já lá vamos, que o que de mais impactante ficou da entrevista foi uma coisa que ele disse mesmo, com todas as letras. Foi o anúncio do milagre dos capitais próprios. Diz Pinto da Costa que em Dezembro – e para quem disso não se apercebeu, Dezembro é já para o mês que vem – a SAD do FC Porto vai melhorar tanto a situação financeira que apresentará capitais próprios “positivos ou perto disso”. Ora isto, a ser cumprido, é mais do que extraordinário. É inaudito. Claro que nem é coisa com a qual Pinto da Costa se preocupe, que, como ele disse, “as pessoas não vão ao Museu do FC Porto para ver o extrato de conta do BCP”. Lá está, uma evidência dita, porque o extrato nem está lá exposto, e um subentendido: aquilo que interessa é ganhar campeonatos e fazer carreira na Champions, em vez de se ficar pelos pontos somados pelo Benfica, que “nem vale a pena contar: são zero”, constatou. Também é claro que o facto de se ter capitais próprios negativos não implica encerramento de atividades, que a classificação de “falência técnica”, que acontece quando se tem uma dívida superior ao ativo, não é inabilitante por si só. Nos últimos dez anos, a SAD do Sporting só teve capitais próprios positivos em três exercícios – ainda que os simples factos de um deles ser o atual e de a recuperação ser evidente na curva desde os 119 milhões negativos de 2013 possam ser apresentados como uma vitória pelos leões. Sucede que o FC Porto está com capitais próprios negativos desde 2016 e que a diferença entre passivo e ativo se tem vindo a agravar de forma acentuada, a ponto de ter andado abaixo dos 100 milhões de euros até Dezembro de 2019, de ter superado essa barreira que nunca mais voltou a passar no sentido correto no seguimento da pandemia (151 milhões em Junho de 2020) e de estar em Junho deste ano no recorde negativo do futebol nacional: 175,9 milhões de euros. Não se recupera disto em seis meses a não ser com um milagre. As contas do semestre serão apresentadas lá para finais de Fevereiro e de certeza que vão aquecer a campanha para as eleições de Abril.
Otávio como placebo. Desenganem-se os que pensam que será a inclusão da transferência de Otávio, feita apenas em Agosto, a salvar as contas, como o líder do FC Porto também deixou várias vezes subentendido. Ora aí está um subentendido que não é uma evidência… A venda de Otávio por 60 milhões de euros (menos as comissões, o fundo de solidariedade e os 12,750 milhões devidos ao clube brasileiro que era dono de parte do passe) pode ajudar a salvar o exercício, isto é, os resultados de 2023, ainda que não seja para quem vê de fora líquido que isso suceda, uma vez que não foi só esse o negócio estrategicamente empurrado para depois do fecho das contas de 2022/23 (a 30 de Junho). Também as aquisições de Nico González (8,4 milhões de euros), Alan Varela (oito milhões), Fran Navarro (sete milhões) e Ivan Jaime (dez milhões) só aconteceram já no decurso do exercício relativo a 2023/24 e, embora os três últimos não tenham sido alvo de comunicado oficial à CMVM, os valores reais não andarão tão longe dos aventados publicamente para se achar que o lucro de Otávio pode amortizar tanto passivo assim. A situação financeira do FC Porto não está como está porque os jogadores – e os administradores também, já agora – ganham hoje muito mais do que há dez anos, conforme referiu Pinto da Costa, ou porque os clubes em Portugal pagam muitos impostos – o que, sendo verdade, se aplica aos outros todos. A situação financeira do FC Porto está como está porque a SAD deixou de ter o toque de Midas que tantas vezes lhe permitia salvar no mercado uma exploração corrente deficitária que também é comum a todos os grandes clubes nacionais. A melhor explicação para a difícil situação financeira da SAD do FC Porto está em compras inflacionadas, vendas mal conseguidas e incapacidade para travar saídas a custo zero. Está nas perdas de Herrera, Aboubakar, Marega, Mbemba ou Uribe, todos sem contrapartida, como pode vir a suceder com Taremi, se o iraniano sair em fim de contrato – sim, que os dez milhões por ano que Pinto da Costa diz que ele recusou eram para ele, não para o clube. Está nas saídas em saldo de Corona – que ficava livre dali a uns meses e por isso mesmo foi cedido por um terço do que custara –, Sérgio Oliveira e até de Luís Díaz, por quem os 45+15 milhões de euros obtidos do Liverpool FC parecem hoje pouco, mas foram aceites por necessidade de momento. Uma necessidade que ajuda a explicar a razão pela qual as contas, afinal, são importantes. Está nas decisões de contratar David Carmo por 20 milhões em vez de ficar, por exemplo, com Diogo Leite, que rendeu 7,5 milhões vindos do Union Berlim. De triplicar em dois anos o que se tinha recebido do SC Braga por Galeno para poder reavê-lo. Ou de investir dez milhões em Verón, outros dez em Grujic, mais dez em Zé Luís, 12 milhões por meio Nakajima, onze por Adrián López, sete milhões e meio em Loum, mais sete em Manafá ou em Depoitre e 20 em Oliver, depois vendido por pouco mais de metade. Encontram-se erros destes em todos os clubes? Sim, é evidente. Mas o FC Porto perdeu a maior parte dos jovens que ganharam a UEFA Youth League em 2019 – ainda sobram Diogo Costa, João Mário, Romário Baró e Gonçalo Borges – e no processo viu a situação financeira piorar bastante. Desde 2019, de acordo com dados do Transfermarkt, o FC Porto apresenta um saldo positivo no mercado de transferências de 184 milhões de euros. É muito? É pouco? É o suficiente para que se entenda que não são os 40 milhões que sobrarão no negócio de Otávio ou o dinheiro da fase de grupos da Champions – onde o FC Porto tem estado de forma recorrente – que vão garantir o milagre dos capitais próprios positivos.
Então e as eleições? Do que mais gente queria ouvir Pinto da Costa falar, no entanto, era de eleições – e disso ele não falou, só deixou perceber, nos tais subentendidos. Quando disse que André Villas-Boas tem todo o direito de se apresentar como candidato desde que “tenha as contas em dia” está a constatar uma evidência e, de caminho, a desprezar essa possibilidade. Quando acrescenta que “mágoa é quando nos morre alguém querido” para responder a uma questão que se destinava a medir-lhe os sentimentos relativos ao facto de poder vir a ter como rival alguém que já lhe foi tão próximo, reforça essa vertente – e ainda se dá ao desplante de dizer que se esteve com Villas-Boas três vezes desde a sua saída do FC Porto para o Chelsea, há 12 anos, foi muito, ou que tem lá na coleção um relógio “muito bonito” que ele lhe ofereceu - no ato implicando que o rival, afinal, até é seu admirador. Quando apresenta as críticas de Frederico Varandas como uma medalha está a procurar capitalizar o apoio dos que imediatamente entendem que se os adversários o querem ver longe é porque ele alguma coisa estará a fazer bem. Pinto da Costa não o disse, mas deixou a pairar no ar a ideia de uma recandidatura montada em cima dos mesmos valores que o nortearam em 41 anos de presidência. Um acima de todos: a união dos portistas contra o Mundo, bem à vista na forma como o presidente desvalorizou os incidentes da Assembleia Geral, alegando que “ninguém foi parar ao hospital”, e criticou aqueles que foram para lá filmar, dando ao mundo exterior munição para atacar o clube. São os valores que, nestes 41 anos, garantiram a Pinto da Costa a condição de líder incontestável. O que perceberemos em Abril é se o clube, entretanto, mudou.
Mais um excelente texto. Parabéns