A hora e meia da verdade
A seleção nacional vai mostrar, hoje, em Bratislava, em que ponto está na evolução que lhe quer ver Martínez. A vitória quase arruma a questão da qualificação mas pode ser um duplo fator de alienação.
Portugal vai tentar obter hoje, em Bratislava (19h45, RTP1), a quinta vitória em outros tantos jogos na fase de qualificação para o Europeu de 2024. O adversário é a Eslováquia, que dividirá com a Bósnia o estatuto de segunda melhor equipa do grupo e, como entretanto toda a gente perdeu pontos aqui e acolá, um sucesso hoje equivalerá a dizer que a segunda volta, que abre já na segunda-feira, no Algarve, contra o Luxemburgo, será um mero pró-forma. Não tenho a mais pequena dúvida de que a seleção nacional estará na fase final, na Alemanha, mas há que lembrar que não foi para estar presente nas fases finais que a FPF substituiu Fernando Santos pelo espanhol Roberto Martínez. Foi para tornar o jogo mais atrativo e arrumar na gaveta das memórias o mal-estar que começava a gerar-se entre o selecionador e alguns jogadores ou o público – que aceitava o “não importa, não importa, se jogamos bem ou mal” quando ganhava mas já andava de pé atrás com as quedas nas fases a eliminar sem propor jogo. Mantendo a sua idiossincrasia tática e comunicacional, Martínez deu um novo fato à equipa, um 3x4x3 que metia mais gente no corredor central e por isso permitia conciliar melhor os talentos de Bruno Fernandes e de Bernardo Silva, e ainda deu papas e bolos a quem quis ver no seu discurso constantemente laudatório uma forma mais positiva de olhar para a vida do que a do rezingão Santos. Os resultados têm sido excelentes – quatro vitórias, 14-0 em golos – mas o ar do balão começou a escapar quando os adeptos sedentos de mudança perceberam que a revolução com que sonhavam era apenas Martínez a ser igual ao que sempre foi, por exemplo, à frente da Bélgica, e que pouco mais iria mudar dali para a frente. E quando, a ajudar à festa, a equipa precisou de um golo de Ronaldo aos 89’ para ganhar em Reiquejavique à Islândia, no mais fraco dos quatro jogos já feitos. Sim, os jogos de Junho são complicados, porque os jogadores já estão com a cabeça nas férias, como estes de Setembro também o são, porque se seguem ao fecho do mercado. Mas a convicção que tenho é a de que se Portugal jogar hoje tão pouco como em Reiquejavique não ganha. E esta, de hoje, é uma vitória seminal para Martínez, que dela precisa para responder aos críticos que não entendem o conservadorismo do treinador na gestão do seu grupo – e é porque não tinham feito trabalho de casa, como vos mostrei neste artigo sobre a renovação das principais seleções da Europa, em que se via que a Bélgica de Martínez mudava muito menos do que o Portugal de Santos. Ganhar hoje em Bratislava não quer dizer que Martínez tenha razão nas chamadas de Cancelo e Félix numa lista que foi reduzida de 26 a 24 nomes, nas ausências de Nuno Santos ou Mário Rui quando não há Nuno Mendes nem Guerreiro, nas convocatórias de Toti e Pedro Neto para manter o contingente dos Wolves ou nos esquecimentos de Matheus Nunes e Pedro Gonçalves. Mas ganhar, por exemplo, com Félix no onze em vez de um Leão em super-forma aliena boa parte do potencial desta equipa. Seja o dos jogadores que ficarão a perceber que não há nada que possam fazer para serem opções, seja o dos adeptos que se reverão cada vez menos numa equipa que corre riscos de cristalizar. A hora e meia de Bratislava será, duplamente, a hora e meia da verdade para Martínez.
Uma Liga a duas velocidades. Viajei ontem para Bratislava, onde hoje vou comentar, na RTP1, o jogo da seleção nacional, e por isso não pude estar nem no The Thinking Fooball Summit nem na Gala da Liga. Tive pena, porque acho que o melhor contributo que podemos todos dar para a evolução do futebol português é a dizer na cara às pessoas aquilo que achamos, a contribuir ativamente para as soluções, e não a desfazer nas que são encontradas e a criar ruído nas redes sociais. Confunde-me, no entanto, esta Liga a duas velocidades, por um lado modernaça, aberta à inovação discursiva, ambiciosa na forma de tentar chegar aos maiores mercados e às famílias em Portugal e por outro tacanha e pequenina, que é o que sobra do show dos árbitros, o programa em que se divulgaram os áudios de algumas intervenções do VAR, na Sport TV, que também não pude ver – e disso, reparem, já não tive pena nenhuma. É, no fundo, a Liga que junta, na apresentação dos seus prémios, o Pedro Pinto das galas da FIFA e da UEFA e a Cristina Ferreira das galas do Big Brother. Até pode ter sido estratégia, a junção dos três eventos no mesmo dia: a cimeira, a gala e a divulgação dos áudios do VAR, porque haverá quem entenda que esta terceira parte do programa das festas está em linha com as melhores práticas do futebol internacional. O resultado final, porém, foi catastrófico – como já tinha previsto aqui, quando voltei a defender que a divulgação das comunicações entre VAR e árbitro de campo deveria ser corriqueira e não dignificada como acontecimento especial e transformada em pasto verdinho para as manadas de tubarugas que infestam o jogo por cá. Hoje – e esqueçam os jornais parceiros e os canais de televisão envolvidos no marketing – do que se fala no país real não é do que de importante e relevante foi dito na cimeira. Tudo o que importa é saber a quem é que alguém na cabina do VAR chamou “filho da mãe” aquando da expulsão de Pepe e encontrar formas de condenar como inapropriadas as justificações dadas para não se marcarem os penaltis a favor do Sporting – ignorado pelo árbitro e pedido pelo VAR – e contra o Benfica – marcado e revertido pelo árbitro após sugestão do VAR. O show dos poderosos até pode funcionar noutros locais, mas por cá a transparência tem de seguir outros caminhos, com menos luzes a acender e a apagar.
Gastar o suficiente. Do que pude ler da cimeira, retive duas intervenções, uma de Antero Henrique, na qualidade de diretor desportivo da Qatar Stars League, e outra de Rui Costa. Não conheço o contexto em que o presidente do Benfica afirmou que ganhar a Champions “não é uma utopia”, se ele se mandou assim para fora de pé por iniciativa própria ou se foi encostado à parede por uma pergunta à qual não podia dar outra saída, mas creio que sim, para já, para um clube português, ganhar a Champions é uma utopia – e eu posso dizê-lo, que não tenho adeptos a quem dar satisfações. Uma equipa portuguesa – e o Benfica, devido às dimensões do seu mercado, é quem parte à frente neste desiderato – não pode ganhar uma Champions ao mesmo tempo que joga a nossa Liga, por uma razão muito simples: o mercado não deixa. “Ah, mas o Benfica até ganhou o grupo do PSG, eliminou o Barcelona num ano e a Juventus no outro”, dizem-me. E é verdade. Mas há que ter a noção de que uma coisa é acertar uma vez no Totobola e outra é fazê-lo de forma reiterada, sem falhar. A Champions é uma prova a eliminar, onde uma má noite, uma má fase, pode deitar tudo a perder – e isso leva a que por vezes, se trabalharem bem, como foi o caso do Benfica nestes últimos anos, equipas menos poderosas possam eliminar outras com melhores condições. Para se ganhar uma Champions, porém, não basta eliminar um poderoso. Tem de se ganhar a vários, todos de seguida, até à final. Para suplantar o handicap que é jogar a Liga Portuguesa, o Benfica – ou outro clube qualquer – tem de tentar um caminho que é longo e percorrido com pequenos passos. Que é o caminho que Antero Henrique defende para a Liga do Qatar, onde também há dinheiro mas não há necessidade de o gastar todo de uma vez, como têm feito os clubes sauditas. “A nossa é uma Liga competente, que desenvolve bem os ativos e que procura recrutar de acordo com as necessidades”, explicou. Aquilo que transforma a Liga Saudita numa coisa mais próxima da ostentação do que de um projeto sério é que, para já, faz zero sentido estar a gastar o que eles estão a gastar. Porque de uma coisa tenho a certeza: para um clube saudita, sim, ganhar a Champions é uma utopia.
Afinal qual é que é melhor? E você, já disse qual é que é a melhor Liga? É a portuguesa ou a saudita? O Ronaldo diz que é a saudita. O Bernardo Silva e o Rúben Dias dizem que é a nossa. Há duas coisas a dizer sobre isto. A primeira é que é uma questão de opinião, não é um facto. E as opiniões, como dizia o Herman, “cada um tem a sua” [“E quem quer Dallas, Dallas]. Eu acho que é a portuguesa, mas tenho de ser honesto e dizer que ainda não vi um único jogo da saudita. Mas a segunda – e mais relevante – é: e isso interessa a quem? A quem interessa este medir de pilinhas entre dois campeonatos que nem sequer competem entre eles? Temos sempre este problema, de querer saber quem é melhor, qual foi mais penalti, quem empurrou com mais intensidade. E, como também dizia o Herman, “não havia necessidade”.