O defensor dos oprimidos
O futebol português normalizou de tal maneira a falta de decoro e de honestidade no espaço público que só admite intervenções tendencialmente monocromáticas. Não é isso que levam daqui.
Fui surpreendido, hoje de manhã, com dezenas de notificações no Twitter, a sugerirem-me que durante a noite tinha passado por uma cabine telefónica, despira o fato de influenciador desonesto e me transformara em defensor sério dos injustiçados face à sujidade das cartilhas da bola. Estranhei, que não estou habituado a tanta compreensão. Geralmente a malta que se dá ao trabalho de policiar jornalistas e comentadores centra-se no desacordo para insultar e, na minha intervenção no 360 de ontem, na RTP3, havia pano para mangas para seguir por aí também. A questão é que fiz ali o que faço sempre, que é dizer exatamente o que penso, se possível suportado em factos. Disse que os 22 minutos de compensação dados na segunda parte do FC Porto-FC Arouca encontram razão de ser em seis paragens para substituições (seis vezes 45 segundos são quatro minutos e meio), dois golos (mais quatro minutos com o VAR a averiguar a legalidade dos lances), três pedidos de penalti por parte do FC Porto após o golo do FC Arouca (mais 12 minutos no VAR, ao todo, incluindo o filme rocambolesco do telefone) e nas outras incidências normais de um jogo. Foi esta conta de somar que mereceu o aplauso de muitos dos que, há nove meses, tinham ido na corrente lançada por um comentador-adepto, ele sim desonesto, e me tinham feito um feroz ataque de caráter a seguir ao golo de Pepe à Suíça, no Mundial. Antes assim. Devem ficar a saber, porém, que a utilização do meu pensamento tem contraindicações para quem vê a realidade de uma forma monocromática. Na mesma intervenção, para que fique bem claro, disse também que se os jogos do FC Porto têm tido mais tempo de compensação do que os dos rivais é porque, estando a equipa azul e branca a produzir pouco e em constantes dificuldades com os resultados, há mais pedidos de penalti, mais simulações, mais necessidade de intervenções do VAR, mais tempo perdido. E nada como o que se passou no Dragão no domingo, com uma decisão incorreta – que teria sido a marcação do penalti sobre Taremi – a ser revertida por meios pouco ortodoxos que, no limite, levam injustamente a que se ponha em causa todo o processo de recurso ao VAR, para se entender aquilo que digo e escrevo há muito tempo e que ainda ontem repeti, em resposta ao comentário de um de vós na edição do dia do Futebol de Verdade. O grande problema do futebol português não são os árbitros. Há bons e maus, mas há sobretudo os que cedem sob pressão e os que radicalizam atitude nessas circunstâncias. Mas aquilo que é problemático é o clima de suspeição permanentemente instigado pelos clubes e pelos que os defendem nos meios de comunicação social, um clima geral que se serve do jogo sujo feito em campo pelos simuladores. Vejo futebol há mais de 40 anos e nunca vi tanta queixa de pisão ou cotovelada na cara, tanta dor incompreendida por parte de profissionais que não podem sentir orgulho se calham a ver a repetição da sua falta de jeito para as artes dramáticas. E o problema é que esta falta de decoro está a normalizar-se também. A ponto de se pedir a anulação de um jogo porque uma equipa de arbitragem tomou uma decisão correta e de haver quem ache isto não só razoável como imperioso.
O show dos poderosos. O incidente do Dragão já foi aproveitado para desacreditar o uso do VAR por gente de todos os quadrantes. É fundamental que se perceba o que falhou ali, porque apesar de a coisa ter acabado com uma tomada de decisão correta, que é o maior desígnio da criação do sistema, não foi defendido o segundo maior propósito da introdução da tecnologia de apoio à arbitragem, que é tornar o processo mais transparente e credível. Quer este caso se tenha devido a falha do sistema, incompetência ou tenha acontecido de forma propositada, na segunda-feira havia mais gente a achar que isto, afinal, está mesmo tudo comprado. O que é mau. Temo que acabe por ser esse, também, o resultado do que parecia ser uma boa medida – a divulgação dos áudios entre árbitro de campo e VAR –, mas que vai ser transformada numa espécie de Big Brother dos relvados. Em vez de fomentarem e normalizarem a transparência, permitindo, por exemplo, a entrada do canal de áudio que tem os diálogos entre árbitros nas transmissões em direto, que é o que se faz em qualquer desporto que não se tenha tornado numa casa de malucos, a Liga optou por divulgar esses sons num programa televisivo especial, dando-lhe foros de acontecimento aguardado. Achará até possivelmente que defendeu por contrato a salubridade do evento, mas ou muito me engano ou, mesmo que impeça, por exemplo, que os diálogos sejam imediatamente comentados pelos adeptos mascarados de comentadores que depois são base de suporte de todas as narrativas de manipulação que os grandes clubes fazem nascer no nosso futebol, o foco mensal neste show dos poderosos vai acabar por levar mais gente para o lado dos que desacreditam o jogo. Porque neste lance o árbitro falou mais rápido, naquele com mais convicção, no outro gaguejou, noutro ainda engasgou-se... Quem vos diz isto é quem está tão pouco habituado a ser visto como jornalista honesto que estranhou as notificações de hoje de manhã. Quem, antes pelo contrário, já foi arrasado porque a crónica de jogo escrita a seguir à vitória de um clube saiu mais depressa do que aquela que se seguiu a um jogo que esse mesmo clube perdeu. Vocês sabem do que estou a falar...
A cabeçada a Keane. Nunca me aconteceu, felizmente, aquilo que sucedeu a Roy Keane neste domingo, quando o ex-capitão do Manchester United passava pelo meio dos adeptos do Arsenal para ocupar a posição onde ia fazer os comentários pós-jogo e foi agredido com uma cabeçada. Mas já tive direito a cânticos e insultos, a ameaças online e sei perfeitamente que já houve jornalistas agredidos nos nossos estádios, alguns até em direto. O caso, porém, serve para vermos que a maluqueira não é exclusivo nacional, como o não são os erros dos árbitros, por mais narrativas que vos vendam, de acordo com as quais é por isso que há cada vez menos gente no estrangeiro com interesse no nosso campeonato. A Premier League anunciou um processo de inquérito, a Sky vai incrementar a segurança em torno dos seus comentadores e toda a gente mentalmente sã concorda com o que disse Gary Lineker, que afirmou que o incidente “não deve ser trivializado”. Pode ser que venha dali uma espécie de livro branco acerca de como reagir a estes casos.
Salvador e o dinheiro público. Na cerimónia de inauguração da segunda fase da sua excelente Cidade Desportiva, ato a que assistiu Nasser Al-Khelaifi, presidente do Paris Saint-Germain e representante no clube parisiense desse feroz defensor dos direitos humanos, das minorias e dos trabalhadores em geral que é o estado do Qatar, António Salvador, presidente do SC Braga, fez questão de salientar que o projeto foi inteiramente suportado pelo clube. “Ao contrário de outros, este não é um projeto publicamente financiado”, afirmou. Salvador merece todos os elogios pelo trabalho que tem vindo a fazer em Braga nos mais de 20 anos que já leva à frente do clube, porque este cresceu não apenas no plano competitivo – e fê-lo de forma consolidada – como no aspeto das infraestruturas, única forma de, com o correspondente incremento da massa associativa, poder vir um dia a ser um dos grandes. Mas a alusão à falta de investimento público foi absolutamente desnecessária e, sobretudo, injustificada. “Ao contrário de outros”? Que outros? Mas esses outros tiveram dinheiro público atribuído de forma irregular? E o SC Braga não teve porquê? Porque Salvador é tão crente no liberalismo que não pediu? Porque pediu e não lhe foi concedido? E tinha direito? Explique lá isso, que a gente quer saber. Num dia tão bonito e importante para o clube, o atirar da pedra seguido do esconder da mão era escusado, mas é revelador do caldo de cultura que se vive no futebol em Portugal. Agora não são só os golos e os penaltis que são comprados. São as cidades desportivas também.
👏👏tudo dito e resumindo em pouco, falta cultura desportiva a todos os intervenientes
O artigo que mais gostei de ler até à data, sem falar de futebol jogado. Já conhecia, aprecio e sou subscritor do substack do António pelas opiniões sobre FUTEBOL JOGADO, mas raramente gostei tanto de ler o que disse como desta feita. Desde a polémica com os 22 minutos (adequados), à fita e habitual choradinho dos pseudo-comentadores do Porto, até à oportunidade perdida do António Salvador de não ser ****** e festejar um dia feliz e importante para o SC Braga. Parabéns e continue! Noutro tópico: gostava de ver uma análise mais técnica à falta de jogo/criatividade/consistência do FCP, que até a mim me surpreende, tendo em conta a qualidade do treinador e de muitos dos jogadores. Esta equipa do Porto AINDA não rende porquê?? E quem julgar que vai ser assim muito mais tempo que se desengane...