A favor da nova Champions
A nova Champions é uma forma de os ricos sacarem mais dinheiro? É. E isso é mau. Mas ao mesmo tempo é inevitável. E a nova Champions também pode ser a forma de os nossos apanharem este comboio.
Palavras: 1424. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Faz-me enorme confusão, por mais respeito e admiração que tenha – e tenho – por algumas das penas mais inspiradas da imprensa britânica, ver a campanha dos jornais ingleses contra o novo formato da Liga dos Campeões, que hoje arranca com seis jogos, um deles o Sporting-Lille OSC (20h, Sport TV5). Ainda hoje, no The Guardian, o sempre brilhante Jonathan Liew apresenta a prova com uma contra-indicação, a de já ser uma forma de permitir que clubes repetidamente participantes, como o Young Boys, na Suíça, o Shakhtar Donetsk, na Ucrânia, o Estrela Vermelha, na Sérvia, ou o Dínamo Zagreb, na Croácia, tenham acabado de uma vez por todas com a competitividade interna nos seus países, tanta receita acumulam a mais do que os rivais locais. E, depois, olha para o novo formato como uma maneira de dar mais dinheiro a ganhar aos clubes que já são mais ricos, de avolumar as desigualdades. Tem razão – e só não entendo por que motivo os ingleses não começaram já uma campanha para acabar também com a Premier League, a competição que, de tão global, permite que os seus clubes beneficiem de orçamentos brutalmente superiores aos dos outros países que depois com eles competem na UEFA. Porque ainda ontem perguntaram duas vezes a Rúben Amorim se a equipa dele pode ganhar a Liga dos Campeões e, compreensivelmente, o técnico do Sporting fugiu à resposta que eu agora vos dou. Não, não pode. Mas este novo formato é um pequeno passo para que um dia venha a poder.
O exemplo dado por Liew a propósito da Suíça não pode morrer ali. “A receita de televisão do Young Boys foi, na última época, equivalente à da soma de todos os outros clubes da Superliga suíça”, escreve. E isso, permitido pelo dinheiro que o clube foi buscar à Liga dos Campeões, é péssimo, como é evidente. Mas, agora digo-vos eu: em 2022/23 (os totais de 2023/24 ainda não estão disponíveis), só vindos da Premier League, o Manchester City recebeu 198 milhões de euros de direitos de transmissão. É mais do que a soma do que embolsaram os 18 clubes da Liga Portuguesa somados – e depois os nossos clubes têm de jogar com eles na Liga dos Campeões. Isso é mais justo do que termos o Servette ou o Basileia a jogar com o Young Boys na Suíça? “É isso [a tal desigualdade de receitas] que permite ao Young Boys investir, numa Liga onde todos os outros têm de vender”, continua Liew. Mais uma vez, é o que acontece quando se compara a realidade dos clubes portugueses com a que vivem os ingleses. Ainda há semana e meia o Observatório do Futebol do CIES divulgou um estudo onde se mostra que, nos últimos dez anos, os clubes da Premier League investiram um total de 11,5 mil milhões de euros no mercado, enquanto que os da Liga Portuguesa, no outro extremo da tabela, foram os que mais tiveram de vender, fechando as contas em 2,3 mil milhões de euros em receitas de transferências. Podíamos competir de outra forma se conseguíssemos manter os principais jogadores? É possível. Porque não o fazemos, então? Faça-se luz sobre o tema: em 2022/23, o City gastou mais de 500 milhões de euros em salários. O Benfica fechou 2023/24 com 114 milhões, o Sporting com 90 milhões. Mais uma vez, os 18 clubes da Liga Portuguesa somados não gastam tanto em salários como o campeão inglês isolado. Como se evita, nesse caso, que os melhores jovens jogadores portugueses queiram ir para a Premier League ao invés de por cá ficarem, no campeonato português? Algemamo-los?
Podemos olhar para isto, encolher os ombros e dizer: “não há nada a fazer, o mercado inglês é maior”. Mas não é esse o tema. Porque o mercado inglês sempre foi maior e a assimetria nunca foi tão grande. O tema é que a globalização fez desvanecer as barreiras entre mercados e, seja porque é favorecida pela que é hoje a língua universal, o inglês, ou por ter trabalhado melhor do que os outros o marketing de expansão, a Premier League não conhece fronteiras. O mercado dos clubes portugueses é Portugal e a diáspora, o mercado dos clubes ingleses é o Mundo. “Entre novas alvoradas e novas regras, há sempre um objetivo à vista, o de permitir que os grandes clubes extraiam ainda mais concessões da próxima vez”, aponta Liew acerca do novo formato da Champions. E, mais uma vez, tem razão. Mas a questão que temos de colocar a nós mesmos situa-se a montante. A quem favorece a manutenção do paradigma predominantemente nacional das competições numa era em que a globalização rebentou já com quaisquer limites expansionistas que os mercados pudessem ter? “Se a fase de grupos já tem oito jogos, porque não 10 ou 12 no futuro? Ainda há muitos espaços a meio da semana para canibalizar nos calendários”, prossegue Liew. E aqui começamos a falar da mesma coisa, ainda que provavelmente a pensar nela acabemos por divergir no sentido da argumentação. É verdade que há jogos a mais, que isso se refletirá no bem-estar dos jogadores, na propensão que eles venham a revelar para se lesionarem. A questão, porém, é definir quais são os que estão a mais.
Para quem já está confortavelmente no topo da montanha são, obviamente, os novos, os que ameaçam o atual estado de coisas. É o crescimento da competição internacional. “Os adeptos de futebol são animais naturalmente conservadores, amarrados a rotinas rituais e sazonais, naturalmente temerosos da mudança”, considera Liew. Nem todos, meu caro. Nem todos. Os ingleses têm uma diferença face a nós, que é o facto de nunca terem tido competição regional – a revolução industrial começou ali e nos inícios do futebol já era possível ver equipas do Norte jogarem com equipas do Sul, enquanto que por cá isso era novidade merecedora de fanfarra nas estações de caminho de ferro de onde se partia e aonde se chegava. Eles não olham, por isso, como nós olhamos, para as hegemonias nacionais que se vão construindo em alguns países europeus como uma forma de seleção natural da equipa daquela região que tem condições para competir um patamar acima. Quando os ingleses estão contra a nova Liga dos Campeões não é só – ainda que possa ser também – por acharem que a UEFA está a meter a unha na hegemonia que a Premier League tem no tempo e na receita universal do futebol. É também porque estão preocupados com a competitividade da Liga croata (ahahahah) ou porque, de tão fechados sobre a sua insularidade auto-suficiente – uma das explicações do Brexit –, preferem ver um Manchester City-Brentford a um Atalanta-Arsenal. Podemos todos achar que eles estão errados, mas enfim, gostos não se discutem. O que depois não podemos é ignorar que não, nem o Sporting, nem o Benfica, nem o FC Porto podem ganhar a Liga dos Campeões – e os dragões até foram os últimos fora das quatro grandes Ligas a fazê-lo, há 20 anos. Ou que 50 dos 80 semifinalistas destes últimos 20 anos (62,5 por cento) chegaram de apenas dois países, Espanha e Inglaterra. Ou, ainda, que nas 80 equipas que jogaram as meias-finais nestas duas décadas, só tenhamos tido duas que não vinham das Big Five, o PSV Eindhoven de 2005 e o Ajax de 2019.
Não gostamos deste desequilíbrio? Claro que não. Ele deve-se ao dinheiro? É evidente que sim. Até aqui estamos todos de acordo. Onde depois divergimos é no que podemos fazer para combater o problema. Um caminho, o de acabar com o dinheiro no desporto profissional de alto rendimento, não é pura e simplesmente viável. Restam outras medidas, como um maior equilíbrio na distribuição da receita da Liga dos Campeões, sem ligar tanto ao ‘market pool’, ou o crescimento da receita vinda do futebol internacional, para que possamos através dela mitigar as diferenças nascidas nas diferentes implantações de mercado das diversas provas de índole nacional. Basta? Nem por sombras. Mas, por mais que tenha nascido – como nasceu – de motivações pouco edificantes e gananciosas, o novo formato da Liga dos Campeões é um pequeno passo para que, daqui a 20 anos, se perguntarem ao treinador do campeão português se a equipa dele pode ganhar a Champions ele responda que sim.
Rodri falou agora de uma possível greve. Terão os jogadores coragem?
Eu concordaria com esta ideia se todos os clubes participantes da Champions (ou de uma possível Superliga) recebessem todos o mesmo valor monetário. Aí sim, daqui a 10/20 anos ou o que fosse poderiamos estar equiparados aos gigantes.
No entanto o que se vê agora é que a UEFA alterou a distribuição da receita da Champions para que os clubes maiores recebam mais e os mais pequenos (como os nossos) recebam ainda menos. Ora, continuando desta forma, não há Champions nem Superliga que o valha, pois as diferenças de orçamento continuarão sempre a exacerbar-se.
Pensar que eventualmente um Manchester City ou um Real Madrid receberão o mesmo que um Sporting, Benfica ou Porto pela participação/jogos é algo enganador na minha opinião. Até porque o modelo extremamente capitalista da sociedade atual não dá sinais de mudança.