A desvalorização dos treinadores
Não é só o facto de João Pereira não poder levantar-se do banco do Sporting por não ter o quarto nível. É difícil encontrar uma época com tão pouca experiência e títulos à frente dos três grandes.
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Se andássemos seis ou sete meses para trás e olhássemos para as contas dos nossos maiores clubes, verificaríamos que, os três somados, mais luvas menos prémios, investiam um valor acima de 20 milhões de euros ao ano em treinadores. Ruben Amorim, Roger Schmidt e Sérgio Conceição podiam ser bons ou maus, consoante o ângulo ou a perspetiva de cada um, mas eram peças tão fundamentais na estratégia dos seus clubes que justificavam o pagamento de ordenados que os deixavam às portas de qualquer dos Top20 mundiais que vão sendo feitos por aí. E estava tudo bem, que os treinadores serão certamente fulcrais na estratégia de clubes que competem num mercado periférico como o nosso, clubes que dependem muito da capacidade para valorizar os seus jogadores e das mais-valias com transferências. O que faz confusão é que, seis meses depois, todos tenham desinvestido brutalmente no setor. Há 12 anos que os três grandes não eram dirigidos por dois treinadores sem títulos no currículo – mas mesmo nessa altura um dos dois sem palmarés já tinha, a título individual, mais jogos de I Divisão do que os três de hoje somados. E o que deve perguntar-se é por que razão isto aconteceu. Foi fruto das circunstâncias ou uma deriva estratégica resultante da insatisfação face ao rumo que as coisas levavam?
Mais uma vez, sem vir aqui dizer se João Pereira, Bruno Lage e Vítor Bruno são bons ou maus, que isso dependerá do gosto e da visão de cada um – no caso de Pereira e Bruno depende até mais da capacidade de adivinhação... –, o que posso fazer é escudar-me em dados. Somando os três treinadores que neste momento se defrontam na luta pelo título, chegamos, ao dia de hoje, a 129 jogos de I Divisão: 113 de Bruno Lage, entre a nossa Liga, a Premier League e o Brasileirão, 13 de Vítor Bruno e três de João Pereira. A esse total há a somar mais 33 partidas de competições internacionais, 25 de Lage, seis de Bruno e duas de Pereira. Do bolo vieram dois troféus, ambos ganhos por Lage, que foi campeão da Liga no Benfica em 2019 e venceu a Supertaça que se seguiu, ainda antes de ser demitido pelos mesmos encarnados que agora o recuperaram. Há seis meses, entre Amorim, Schmidt e Conceição, contávamos 911 jogos de primeiro escalão em seis campeonatos diferentes, 203 partidas internacionais, mais de 100 das quais na Liga dos Campeões, e 24 títulos, dos quais sete tinham sido de campeão nacional, em Portugal ou na Áustria, onde Schmidt vencera à frente do Red Bull Salzburgo. Se a época passada, tal como a de 2021/22, com Amorim, Jesus e Conceição, era uma espécie de exceção, pois os três treinadores já tinham sido campeões portugueses, para se encontrar uma tripla em que dois dos responsáveis ainda não haviam ganho rigorosamente nada era preciso recuar a 2011/12, quando só Jorge Jesus tinha palmarés entre os líderes dos três grandes. Mas, ainda assim, havia uma grande diferença.
É que, na altura em que o Benfica mantinha a confiança em Jorge Jesus, campeão português em 2010 e vencedor de duas Taças da Liga, em 2010 e 2011, e o FC Porto substituía o hoje presidente André Villas Boas, que saíra para o Chelsea, por Vítor Pereira, o seu antigo adjunto, ainda sem um só jogo aos comandos na divisão principal, o Sporting apostava em Domingos Paciência, também ele não titulado, mas já com 139 jogos de I Divisão à frente de UD Leiria, Académica e SC Braga e 21 partidas internacionais pelos bracarenses. Domingos, é certo, não tinha títulos, mas já conquistara um segundo lugar na Liga (em 2010) e disputara uma final da Liga Europa (em 2011). A história veio a dizer-nos que a aposta não funcionou e que a feita por Pinto da Costa no inexperiente Vítor Pereira deu frutos – mais dois campeonatos, em 2012 e 2013 –, mas em todas era possível encontrar um racional. E a verdade é que, daí para cá, se ignorarmos períodos de instabilidade e crise, não foram muitas as contratações de treinadores sem títulos ou experiência para os grandes. O que leva à pergunta. Porque é que agora todos escolheram o caminho da diminuição do peso específico do treinador? Sendo mais ou menos claro que em cada caso haverá uma razão diferente, o que nos diz a renitência de Frederico Varandas, Rui Costa e André Villas-Boas em abrirem os cordões às bolsas face à necessidade de substituírem os tais treinadores que já andavam acima dos seis milhões de euros por ano? E irão eles arrepender-se?
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A primeira aposta foi a de André Villas-Boas, que escolheu Vítor Bruno, e terá sido condicionada por duas razões e uma necessidade. As razões terão sido o apoio de Sérgio Conceição à candidatura de Pinto da Costa nas eleições e a vontade de romper com o futebol de pressão e transição e com a conflitualidade permanente na comunicação do técnico anterior. A necessidade, o estado dos cofres, arruinados numa série de mercados consecutivos que não são fáceis de compreender, tanto nas saídas como nas entradas, e que não permitiam ao FC Porto apontar a alguém com mais nome. Seguiu-se Rui Costa, que foi teimoso na manutenção de Schmidt no defeso mas se livrou dele ao fim de quatro jornadas da nova época. A aposta em Bruno Lage, despedido da Luz há quatro anos e sem trabalho que se visse desde então, pode ser vista como solução de recurso, num bombeiro que conhecesse o clube, uma espécie de Mário Wilson dois-ponto-zero. Por fim, juntou-se ao lote Frederico Varandas, que ficou sem Amorim e quis manter o plano que tinha desenhado para quando isso acontecesse, a subida de João Pereira, forma de provar o toque de Midas de quem até já tinha contratado Marcel Keizer e Jorge Silas antes de acertar em cheio com o técnico que agora escolheu o Manchester United. No final, um dos três treinadores será campeão – e, como vimos com Vítor Pereira em 2011, não tem de ser o mais experiente ou mais titulado, porque há outros fatores a ter em conta, como o que vale cada plantel.
Dizia Jimmy Hagan, tricampeão pelo Benfica em 1971, 72 e 73, que “se um dia colocássemos 16 mecânicos de automóveis à frente das 16 equipas da I Divisão, um mecânico de automóveis acabaria por ganhar o campeonato”. Mas nem isso impedirá esta época de ser marcante à conta do desinvestimento que todos os candidatos fizeram numa área que é fundamental. É que um treinador não está lá só para ganhar títulos. Um treinador é o primeiro garante da visão futebolística e da estabilidade da política desportiva. É o responsável pelo crescimento dos jogadores, pela sua valorização no mercado de transferências. É o líder do grupo, alguém que tem de olhar para os jogadores como um chefe olha para os subordinados, escolhendo depois se quer comandá-los pela autoridade, pela empatia ou pelo carinho. Não pode nunca ser visto por eles como um elo mais débil da cadeia. Independentemente do que até podem valer os três nomes escolhidos, de Lage já ter sido campeão com mérito próprio, por exemplo, na promoção de Félix, de Bruno ter anos suficientes no clube para lá saberem o que ele vale e de Pereira ser ainda uma total incógnita, que ninguém em rigor sabe o que vai dar, um dos três será campeão mas todos acabarão por sofrer na pele o desinvestimento que este ano estão a caucionar, desvalorizando o treinador.
Boas AT. Faltou referir que o Vitor Bruno tb conquistou uma Supertaça. Eu acho que a escolha em Vitor Bruno é acertada, enquanto a do João Pereira é totalmente um tiro ao lado. Quando o Amorim ficou para os jogos com o City e Braga eu pensei que passar a pasta seria nessas duas semanas o João Pereira sentar-se ao lado do Amorim para esses jogos.
Se era para mudar a maneira de jogar do Sporting, mais valia terem ido buscar o Rui Borges logo a partida.
A desvalorização do treinador existe há muito tempo e começa logo nos adeptos. Se falamos de investir num bom jogador, todos aplaudem, se falarmos de investir num bom treinador, com currículo e qualidade indiscutíveis, todos perdem a cabeça e gritam logo que não, impossível, nem pensar, muito caro...