UR Saudita
Quer saber “tudo sobre o casal mais famoso do Mundo”? Não é aqui. Aqui vos falo do que significa Ronaldo no contexto da seleção nacional, das entrevistas de Roberto Martínez e dos exílios sauditas.
Palavras: 1266. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Não sou ainda um dos 30 milhões – enfim, quando lerem o que estou a escrever já serão mais – de subscritores que Cristiano Ronaldo agregou num par de dias para o seu canal de YouTube, o mundialmente famoso UR Cristiano, mas como ouvi dizer que ele tinha marcado um golaço, ontem, ao Al Raed, na primeira jornada da Liga Saudita, fui ver se o lance lá estava. Não está, mas em contrapartida é ali que posso saber “tudo sobre o casal mais famoso do planeta”, que é o formado pelo CR7 e pela espanhola Georgina Rodríguez. Como sou um tipo estranho, que não só não quer “saber tudo” como não quer saber mesmo nada, nem sobre “o casal mais famoso do planeta” nem sobre o casal que vive aqui do outro lado da rua, fui ver o golo à box – e foi mesmo um grande golo, a dar alguma razão àquilo que disse Roberto Martínez nas entrevistas que concedeu à TVI e ao ZeroZero acerca da idade e do exílio na Liga saudita: são mesmo coisas para serem vistas numa perspetiva individual. No entanto, aqui há muito mais que se lhe diga, não só acerca da gestão marquetizada que Martínez faz da seleção nacional como das razões profundas que levam a que os jogadores portugueses de topo sejam os mais propensos a aceitar jogar um campeonato irrelevante como é o saudita a troco de dinheiro. E se, como tudo indica que vai suceder, agora lá for parar também o Cancelo, começam a faltar-me os argumentos.
Martínez não nos deu nenhuma novidade em duas entrevistas. Que tem ao dispor “dados confidenciais” que provam que teve razão na utilização aparentemente excessiva de Ronaldo no Europeu, que António Silva vai dar a volta por cima, João Neves vai ser o maior lá da França, Félix agora é que vai explodir, porque finalmente não está emprestado, Vitinha saiu naquele jogo em que até estava a ser o melhor por causa da relva, gosta muito do Pedro Gonçalves, mas ele teve o azar de se lesionar logo naquela vez em que, vejam só, tendo estado em todas as pré-convocatórias já há um ano, foi mesmo chamado... Tudo dito a sorrir, num português notavelmente escorreito e com uma simpatia inatacável. Eu, que já vi imensos comentários complexos e assertivos de Martínez, por exemplo, nos pós-matches da Premier League, na Amazon Prime, e que por isso sei que ele sabe bastante de futebol, tenho dificuldades em não adormecer com esta ladainha. As entrevistas do selecionador significam para mim o mesmo que as curiosidades da vida mundana do Cristiano e da Georgina: quem é que lava a loiça e quem é que estende a roupa, enfim, essas coisas... Mas de repente bate-me que mais de 30 milhões de pessoas já subscreveram o canal do CR7, pelo que, não é que isso me diga que estou errado, mas diz-me, pelo menos, que tal como há mais gente a querer saber disso do que de como foi o golo que ele marcou, também haverá seguramente muita gente que gosta de se deixar enredar nesta teia cor-de-rosa que o selecionador tece a cada vez que nos fala da equipa que sonha ver como campeã do Mundo.
Estou à vontade, porque nunca entrei na corrente que queria afastar Cristiano Ronaldo da seleção. Antes da prova escrevi que o levaria ao Europeu e que, para mim, ele seria titular da equipa. E escrevi-o por razões que são as que me interessam, que são as futebolísticas. Se de repente Martínez tem os tais dados secretos que lhe dizem que a quantidade de minutos que deu ao capitão, por exemplo, no insignificante desafio com a Geórgia, não foram apenas para poder satisfazer-lhe o ego e o desejo de fazer um golo na competição, de forma a bater mais um recorde, mas que, pelo contrário, fizeram com que ele se apresentasse ainda mais capaz na partida seguinte, contra a Eslovénia, pois então aquilo que se conclui é que estávamos os dois enganados, eu e Martínez, porque o Ronaldo do jogo com os eslovenos foi claramente insuficiente. E aí batem-me os 30 milhões de subscritores que ele conseguiu num par de dias e a noção de que o futebol não é só o futebol – são também coisas mundanas, como quem lava a loiça e quem estende a roupa lá em casa. Cristiano Ronaldo é a figura mais conhecida do planeta e é natural que com ele em campo haja mais gente a assistir aos jogos, a invadir os campos para tirar selfies, provocando ainda mais buzz, a comprar camisolas, a seguir as redes sociais, a subscrever canais, bem como que isso melhore tudo o que rodeia qualquer operação montada pela FPF. Não posso naturalmente afirmar que é assim, mas admito que quando Martínez responde, acerca da eventualidade de Ronaldo ainda ir ao Mundial de 2026, que não fala com os jogadores a não ser “acerca do dia-a-dia”, esteja a defender-se, porque esse é um tema fundamental para o próximo biénio. E, num Mundo ideal, não tinha de nem devia sê-lo.
No fim de tudo, aparece sempre o dinheiro, a escala, os milhões de subscritores e de clientes. Se é esse o racional do plano saudita para o futebol – e este ano, numa semana de férias, vi dezenas de camisolas do Al Nassr, a provar que está a funcionar –, acaba por ser natural que seja também o do futebol português. Os sauditas têm dinheiro e precisam de reconhecimento e de lavar a imagem de um regime autoritário. Os portugueses têm reconhecimento mas não têm dinheiro. Quando os dois se encontram é um pouco como o cruzamento da fome com a vontade de comer. Martínez pode defender à vontade que não é por estarem a jogar uma Liga de fachada que os jogadores que vai chamando perdem competitividade – aliás, aqui há uns tempos estive com Jorge Jesus, que continua a sustentar que a Liga saudita tem um nível pelo menos idêntico, senão superior, à portuguesa ou à francesa. Mas por alguma razão – e não será por não terem “dados confidenciais” que lhes provem o contrário – os selecionadores da Europa são todos um pouco mais renitentes do que Martínez quando se trata de chamar jogadores que por lá andam. Imagino que seja por, não sendo regularmente postos à prova com o mesmo grau de exigência, os jogadores ali começarem a baixar um pouco o nível de competitividade. Portugal foi ao Europeu com dois exilados sauditas (Ronaldo e Rúben Neves) e só não levou Otávio porque ele se magoou à última hora. Nos últimos dias do mercado, especula-se agora acerca da possibilidade de João Cancelo trocar o Manchester City pelo Al Hilal e de também Danilo, com menos espaço no PSG, lá ir dar.
Martínez não está preocupado – e se estivesse, o mais certo era que guardasse a preocupação para ele, que toda a gente sabe que partilhar preocupações não é bom marketing. Eu, porém, estou. E estou por duas razões. Primeiro, porque os vejo a perder competitividade. E depois porque não me agrada que sejamos sempre nós, os portugueses, a aparecer na primeira fila quando toca a lavar a imagem de um regime autocrático como é o saudita. Ainda que, admito, isso possa interessar-vos tão pouco como a mim me interessa saber tudo sobre “o casal mais famoso do planeta”.
Grande artigo. A analogia é perfeita e o texto, no seu todo, a meu ver é muito feliz e sensato. Parabéns!
Os selecionadores nacionais têm uma tendência de desvalorizar o campeonato Português, achando que quando o jogador se torna emigrante, imediatamente está mais preparado que os outros, é melhor que os outros e deve ser chamado em detrimento dos outros. Só por aí percebe-se a nunca chamada de Pedro Gonçalves, porque taticamente, alternando sempre entre o 433 e o 343, tendo Pedro Gonçalves todas as condições para ser titular no 343, não vejo como pode ser opção futebolística.
Agora chegamos ao ponto em que até a Liga Saudita é vista como superior ao campeonato Português e que quem lá joga, perdendo essa competitividade de forma clara (a opinião de Jesus é sempre pouco credível, porque só sabe alimentar o seu ego, tal como Ronaldo), continua a ser chamado em detrimento de quem cá joga.
Ronaldo vende, todos sabemos que vende, entendo que a FPF o mantenha perto, mas quando a parte comercial interfere em quem joga na equipa nacional, quando afeta a parte desportiva e se prefere perder em campo, mantendo a marca, isso é grave e demonstra falta de capacidade para treinar a equipa nacional, incompetência e deveria ser suficiente para afastar o presidente da FPF.