O destruidor de mitos
A série de excelentes resultados do Vitória SC neste início de época mostra que Rui Borges está a fazer uma excelente equipa e pode destruir um dos Adamastores mais tolos do futebol português.
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Se quisermos diminuir aquilo que está a ser feito poderemos sempre centrar-nos na falta de qualidade de alguns adversários, como os malteses do Floriana, ou na sorte de ter apanhado, a abrir a Liga, duas equipas, o Estoril e o FC Arouca, que se via à légua que estavam mais frágeis neste início de época, mas começa a ser complicado olhar para o que está a fazer o Vitória SC de Rui Borges e achar que nada mudou. Terá mudado, quanto mais não seja um paradigma que levava o clube a cair sempre nas pré-eliminatórias europeias contra adversários que, em condições normais, deveriam estar ao seu alcance. Os minhotos levam sete vitórias noutros tantos jogos de competição, ainda não sofreram um golo para amostra, marcaram 15, têm afirmado alguns jogadores, Händel e Mangas à frente de todos mas também Borevkovic, feito líder de uma defesa que mudou a estrutura para esta época, e com os 3-0 de ontem ao Zrinjski, na última barreira antes da fase de grupos da Liga Conferência, parecem muito bem lançados para, finalmente, garantir a estreia de Portugal na terceira competição da UEFA e permitir que cá cheguem também os seus pontos de ranking.
A última vez que o Vitória SC foi europeu já no Outono aconteceu ainda antes da pandemia, em 2019. Não resta em Guimarães um único dos 14 homens – sim, que antes da pandemia só se permitiam três substituições – utilizados por Ivo Vieira na vitória em Frankfurt (3-2) contra o Eintracht com que os minhotos se despediram dessa fase de grupos da Liga Europa, que foram os alemães e o Arsenal quem seguiu em frente. Nesse ano ainda nem havia Liga Conferência, criada apenas em 2021. Para o Vitória SC, após esse afastamento, vieram duas temporadas de ausência europeia e outras duas marcadas por uma espécie de eliminação por desistência nas preliminares, sempre por equipas saídas da antiga Jugoslávia – como, agora, os herzegóvinos de ascendente croata. Mas nem o Hajduk Split de 2022 nem o NK Celje de 2023 ficaram depois para a história como sendo equipas suficientemente fortes para superar a oposição portuguesa – e a verdade é que nem um nem o outro chegaram à fase de grupos. Em Portugal generalizou-se a ideia de que investir numa carreira europeia podia levar a uma época sofrida no plano interno, muito por causa do que aconteceu ao FC Arouca em 2016/17 e ao Rio Ave em 2020/21: ambos desceram depois de terem chegado ao play-off europeu, os arouquenses batidos pelo Olympiakos e os vila-condenses pelo poderoso Milan, mas só nos penaltis.
Esse, porém, é um dos mitos do futebol português mais recente, facilmente desmontável se repararmos que, antes do Vitória SC, esta época e na anterior, a última equipa além dos três grandes e do SC Braga a conseguir duas classificações internas consecutivas em zona europeia tinha sido o Estoril, quinto da Liga em 2012/13 e quarto em 2013/14. Todas as outras caíram de um ano de sucesso para o seguinte, por uma razão mais complexa do que “a necessidade de começar a época forte, para garantir uma vaga nas provas da UEFA”. É que não há no nosso futebol estrutura para aguentar o sucesso de forma reiterada e sempre que um clube menos estruturado o consegue o que lhe acontece é que a equipa se vai. Do seu onze mais utilizado em 2019/20, o Rio Ave perdeu em 2020/21 Matheus Reis, Nuno Santos, Diego Lopes e Taremi. Quatro anos antes, o mesmo sucedera ao FC Arouca com Gegé, Lucas Lima, Maurides e Ivo Rodrigues. Este Vitória SC também teve baixas, para já de Jota Silva e André Silva, mas parece ter sabido acautelá-las com a mudança de sistema tático e a entrada de gente com qualidade, como o lateral João Mendes, o suficiente para poder libertar Ricardo Mangas na frente – onde já fez quatro golos e uma assistência. O principal desafio à temporada do Vitória SC não está, para já, na capacidade de ultrapassar o Zrinjski e no desgaste que este início de época poderá provocar quando chegar o Inverno. Está, sim, na capacidade que a administração vier a ter de segurar alguns dos jogadores mais importantes na semana e meia que falta de mercado – e no que penso em primeiro lugar é no excelente Händel, um médio-centro de categoria como não há muitos na Liga portuguesa.
A troca de ponta-de-lança, de um perfil mais combinativo como era o de André Silva para um jogador que funcione mais como referência na frente, como o são tanto Chucho Ramírez como Nélson Oliveira, permitiu também que o Vitória recalibrasse o papel dos extremos, que no 3x4x3 da época passada jogavam mais nas entrelinhas e por dentro, onde Jota procurava as roturas, em contramovimentos com o ponta-de-lança, e agora ocupam mais as faixas. Tanto Kaio César como, mais ainda, Ricardo Mangas fazem esse papel, sem esquecer o que pode dar Telmo Arcanjo ou, numa perspetiva diferenciada, mais próxima das ideias da época passada, João Mendes – o outro, não o lateral vindo do FC Porto. O meio-campo, agora assumido a três, mesmo sem o regresso do terceiro avançado, como se fazia em 2023/24, tem assim mais condições para beneficiar da complementaridade entre o futebol mais criterioso e seguro de Händel e o risco que lhe é dado por Tiago Silva, com os acrescentos mais criativo (se for Nuno Santos) ou rotativo (Samu). E se nas laterais ainda parece haver alguma falta de profundidade, nos centrais há gente suficiente para fazer duas duplas, com a liderança de Borevkovic – que já esteve naquele Rio Ave do playoff contra o Milan. Além do croata, há Jorge Fernandes, há Villanueva e há Tomás Ribeiro, razões mais do que suficientes para ajudar a explicar os 681 minutos de jogo que decorreram desde o último golo sofrido por Bruno Varela, um penalti de Cristo González, ainda na época passada.
Este Vitória SC tem qualidade para jogar na Europa e em Portugal ao mesmo tempo, assim o deixem sem lhe enfraquecer o grupo no que resta de mercado. Mais: precisa disso para poder dar o passo em frente, para se consolidar e evitar as constantes flutuações de classificação de que tem padecido. Além disso, a presença de cinco equipas nacionais nas fases de grupos – Sporting, Benfica, FC Porto e SC Braga já estão seguros, os braguistas só sem saber em que competição entrarão, se na Liga Europa, como se espera, ou na Conferência, como pode acontecer-lhes se caírem contra o Rapid Viena – é fundamental para a reafirmação a médio prazo do futebol português como potência no contexto internacional. Numa altura em que se debate cada vez mais a capacidade da indústria para atrair receita, de a negociação centralizada dos direitos ser uma realidade proveitosa e sustentável, é importante que os nossos clubes de classe média entendam que também têm um caminho de superação a percorrer e que muitas vezes esse caminho implica ignorar os Adamastores que lhes inventaram como obstáculos.
Os clubes Portugueses têm de repensar o negócio do futebol em Portugal e perceber que para um futuro risonho, têm de valorizar o futebol Português. Parar com preconceitos, de olhar para nomes e favoritismos e assumir uma mentalidade desportiva e vencedora. Já os grandes andam a menosprezar a Liga Europa, com medo de tentar ganhar, como os outros menosprezam a Liga Conferência, e todos saíram prejudicados por isso. Para já deixou de se colocar a questão do ranking, pois não há como evitar adversários do mesmo pote, mas não se sabe o futuro e cair demasiado torna ainda mais difícil o apuramento para a Liga dos Campeões.