Uma seleção simples
A Espanha conquista-nos pela simplicidade. Descomplica, com os laterais na linha, o médio-centro a baixar para lançar, os médios interiores a formar triângulos para o jogo posicional. E tem talento.

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Não sou, de todo, especialista na matéria, mas assim de repente e sem pensar muito no tema não me vem à memória um filme mais inesperado e fora da caixa na obra de um realizador do que “Uma História Simples”, de David Lynch. “The Straight Story” – a tradução não permite o trocadilho – conta o périplo de Alvin Straight, um veterano de guerra que não tinha carta de condução e fez 400 quilómetros ao volante de um cortador de relva para ir visitar o irmão que estava a morrer, num outro estado do Midwest norte-americano. Se tivermos em conta que Lynch tinha feito o delirante “Eraserhead” e logo a seguir nos deu o complexo “Mullholland Drive”, o road movie geriátrico feito em torno da viagem de Alvin Straight conquista-nos pela simplicidade com que nos conta uma história. E é isso que acontece com a Espanha de Luis de La Fuente, equipa a que há sensivelmente um ano chamei “canónica” (está o texto aqui) e que entretanto, desde esse Europeu que ganhou, manteve os princípios e foi crescendo em talento, tornando-se a cada dia que passa mais temível no ataque.
Pode parecer terrivelmente desenquadrado aos mais novos, mas eu cresci numa altura em que a alcunha da seleção espanhola era “a fúria vermelha”. O perfil do jogador espanhol era o de garra, luta, arreganho e casava bem com os relvados tantas vezes pesados e revoltos do País Basco ou com a eternidade que duravam os jogos no Santiago Bernabéu. Lutava-se mais do que se jogava. A revolução fez-se nos anos 90 do século passado, com a Quinta del Buitre, no Real Madrid, e a influência de Johann Cruijff, a partir do FC Barcelona. Pep Guardiola é o pai daquele futebol circular que ficou conhecido como o “tiki-taka”, o passa, repassa e torna a passar, mas a origem desse jogo posicional vem mais do avô, Cruijff, e da influência que ele teve, primeiro na geração de treinadores que com ele coexistiu – Valdano, Lillo, Fernández, Floro... – e, depois, naqueles que ele dirigiu e mais tarde se tornaram também técnicos, como Guardiola. Luis Aragonés, que era nove anos mais velho do que Cruijff e a quem por alguma razão chamavam o “Sábio de Hortaleza”, foi quem teve a sagacidade para fazer na seleção a fusão entre o futebol do neerlandês e a tradição do jogo de toque que era mais latino-americana, corporizada por exemplo em Cesar Menotti. Ajudado pela eclosão de uma geração fenomenal no FC Barcelona e pela evolução tática debaixo do chapéu guardiolista, Aragonés conquistou o Europeu de 2008 e estabeleceu uma tendência que depois veio a ser respeitada por todos os seus sucessores, desde o madridista Vicente Del Bosque a Luis de la Fuente, passando por Luis Enrique.
A matriz do jogo da Espanha é a mesma, ainda que depois os efeitos práticos observáveis no relvado variem consoante o talento. A equipa de Luis Enrique, que fracassou no Europeu de 2020 e no Mundial de 2022, por exemplo, parecia ser a mais circular de todas, mas não por uma questão de princípio ou devido a uma obsessão do seu líder. Era, sobretudo, porque não tinha tanto talento que lhe permitisse encontrar a saída do labirinto com a mesma frequência. No Europeu já lá estavam Oyarzábal e Ferrán Torres, mas os outros atacantes eram Morata, Traoré, Sarabia e Gerard Moreno. Há três anos, no Mundial do Qatar, chegaram Ansu Fati, Yeremy Pino e Nico Williams. Agora, além de o extremo do Athletic Bilbau ter mais dois anos, já há Lamine Yamal. E isso faz diferença. Se a Espanha de 2022 nos adormecia a passar a bola de forma incessante (1061 passes nos 7-0 à Costa Rica, 1070 na derrota com o Japão, 1041 na eliminação aos pés de Marrocos, por exemplo), a de 2025 tem tantas maneiras para sair do carrossel que até já vão sendo comuns os jogos em que tem menos posse de bola do que os adversários. Ontem, nos 5-4 à França, teve 43 por cento. A Espanha não mudou a ideia. Bom, talvez não seja tão radical na sua base posicional, tendo passado a permitir mais jogo interior aos extremos em vez de os abrir tanto na linha como mandava a cartilha cruijfista, mas a sua filosofia continua a ser a mesma. Cada jogador, cada posição, cada função é o que é e nada mais do que é. A saída faz-se com os dois laterais abertos na linha e com centrais que saibam jogar a bola. O médio-centro baixa para ser a base do triângulo de meio-campo e ligar com os interiores ou com os extremos. Os dois interiores dão linhas de passe por dentro a permitir envolvimentos – sendo que um deles vai sempre dar apoio ao “seis” em início de organização ofensiva, criando um quadrado com os dois centrais. O ponta-de-lança baixa em apoio permanente, transformando o tal triângulo de meio-campo num losango, assim atraindo pelo menos um dos centrais adversários a zonas mais avançadas e abrindo os buracos para as diagonais interiores dos extremos. É tudo tão simples que quase apetece perguntar porque é que não há mais equipas a jogar assim, sem tanta complicação.
A razão é sobretudo uma. Porque se toda a gente jogar simples, o normal é que ganhe quem tem mais talento. A Espanha e a França da meia-final de Estugarda têm toneladas de talento. Se os espanhóis apresentaram Yamal, Oyarzabal e Nico Williams na frente, mais Pedri, Merino e Zubimendi a meio-campo, ainda com Olmo e Ruiz de sobra, os franceses tinham Dembelé, Olise, Mbappé e Doué – e ainda puderam somar-lhes Barcola, Cherki e Kolo Muani no decorrer do jogo. A Espanha que nos vai surgir pela frente na final de domingo tem uma base filosófica consolidada e é servida por jogadores talentosos e confortáveis nas missões que lhes são confiadas. Nesta Liga das Nações, os espanhóis têm seis vitórias e três empates para contrapor às seis vitórias, dois empates e uma derrota dos portugueses. Nos últimos cinco jogos, a Espanha marcou 15 golos, o que é suficiente para meter medo a qualquer um. Mas sofreu 12, o que também chega para acalentar a esperança de quem lhe aparecer pela frente. E não se valoriza devidamente o facto de Portugal apresentar um 13-6 no saldo de golos das mesmas cinco partidas mais recentes. Se Portugal se apurou na quarta-feira para a quarta final da sua história (2004, 2016, 2019 e, agora, 2025), a Espanha vai para a terceira consecutiva (2023, 2024 e 2025, as duas primeiras ganhas) debaixo das ordens do descomplicador máximo que é Luis de la Fuente. Perante todos estes dados, parece tentador descomplicar também, ir para jogo sem aquela hiper-valorização estratégica a que Roberto Martínez apelou para vencer a Alemanha. Mas a pergunta que há a fazer neste momento pode ser cruel. Terá Portugal mais talento, jogador por jogador, do que a Espanha? Valerá esta nossa geração assim tanto para nos permitir bater de frente com a que é neste momento a melhor seleção do Mundo? Temo que não.
As finais como a de domingo podem ganhar-se de várias maneiras. Podem ganhar-se porque se tem a melhor equipa, os melhores jogadores, como Portugal ganhou a de 2019, aos Países Baixos. Podem ganhar-se porque se resiste, se tem alguma sorte dentro de uma ideia pouco atraente mas sempre coerente e disciplinada, como Portugal ganhou a de 2016, à França. No domingo, aquilo que a equipa portuguesa vai propor será certamente uma terceira via capaz de meter obstáculos no carrossel espanhol e tapar as saídas do labirinto ao adversário. É para isso que lá está a estratégia, quando todos esperaríamos que se escolhesse o caminho mais simples e direto. Porque este, às vezes, apanha trânsito.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira enquanto houver equipas portuguesas no Mundial de clubes. No dia do derradeiro Último Passe de 2024/25 sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia. A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h) e apenas para subscritores Premium. A partir daí, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.
Quarta final de Portugal: 2004 (0-1 contra a Grécia), 2016 (1-0 contra a França), 2019 (1-0 contra a Holanda). Daqui a umas horas saberemos se mister Martinez é deus ou o diabo, bestial ou besta. Falta pouco.
Se a Espanha jogar o que tem jogado, Portugal não tem hipótese. Muito mais se Martinez voltar a inventar.