Isto não é como começa...
Um dos clichés do futebol diz que “isto não é como começa; é como acaba”. Na vitória contra a Alemanha, pela primeira vez, fez sentido a aplicação que Roberto Martínez faz desse aforismo aos onzes.

Palavras: 1210. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no Telegram).
O que muda um jogo? É um golo? Uma substituição? E se forem um golo e três substituições? A vitória de Portugal sobre a Alemanha, em Munique (2-1), a garantir a vaga na final da Liga das Nações, foi conseguida num jogo que foram dois. Houve um jogo até a Alemanha marcar, um jogo dominado pela hipervalorização estratégica por parte de Portugal, e depois houve outro após o golo de Wirtz, aos 48’, com as três mudanças feitas por Roberto Martínez, dez minutos mais tarde, e a capacidade da equipa nacional para se soltar ofensivamente e assumir o desafio com a bola. O que foi decisivo? Foram as entradas de Francisco Conceição, autor de um golão, de Vitinha, a ligar construção com criação a meio-campo, de Nelson Semedo, a mudar a forma de interpretar a função de lateral direito até aí desempenhada por João Neves? Foi a decisão de assumir a partida, de se soltar para atacar, que só surgiu quando a equipa se viu em desvantagem? Ou foi, pelo contrário, a abdicação da bola por parte da Alemanha assim que assumiu a dianteira? Na verdade, foi tudo junto. Porque nenhum destes fatores existiria sem os outros.
Martínez assumiu no final da partida que “há uma série de coisas que temos de fazer bem se queremos jogar olhos nos olhos com a Alemanha fora de casa”, mas quem quer que tenha visto a segunda parte criativa e cheia de ocasiões de golo de Portugal sentir-se-á no direito de perguntar o que faltou para termos tido isso também nos primeiros 45 minutos. E o debate pode eternizar-se: Portugal resistiu estoicamente na primeira parte e foi bom na segunda ou, pelo contrário, foi insuficiente nos primeiros 45 minutos e fez apenas o que lhe competia após o golo de Wirtz? As duas versões são aceitáveis, ainda que mutuamente exclusivas. Na primeira parte, faltou a Portugal ter os jogadores certos em campo, faltou a Alemanha enfraquecer a guarda, por não se ver à frente, mas houve também a tal hipervalorização da parte estratégica do jogo por parte da equipa nacional. Martínez montou o onze em 4x2x3x1, com algumas surpresas, como a ausência de Vitinha ou a colocação de João Neves a lateral-direito – mesmo que seja o lateral “martiniano”, que vai ocupar espaço ao meio nos momentos ofensivos. A defender, a seleção encostava muitas vezes seis homens atrás, com a incorporação de Ruben Neves e Pedro Neto na mesma linha de João Neves, Ruben Dias, Gonçalo Inácio e Nuno Mendes. O plano era ao mesmo tempo complicado, chegando a provocar hesitações acerca de quem devia fazer o acompanhamento de cada um dos três avançados alemães, e simples, porque ofensivamente a equipa fazia sempre a mesma coisa – e criava desequilíbrios. O futebol português era minimal repetitivo: atraía a pressão e soltava Neto em acelerações pelo espaço vazio que existia nas costas da última linha alemã.
O que é que faltou nessa altura? Depende. A Portugal faltou capacidade para prolongar as posses, ligando o jogo nas entrelinhas. Bernardo Silva, Bruno Fernandes e Trincão quase não apareciam a atacar, porque a equipa não conseguia ter bola dentro do bloco adversário – só jogava de esticão. Mas não só. Faltou igualmente capacidade de definição no último terço: pelo menos uma das três vezes em que Neto se soltou tinha de ter gerado mais qualquer coisa, um golo para amostra, mas todas se perderam, fosse no último passe ou na finalização. A defender, a equipa ainda foi aguentando o embate, não sem algumas dificuldades, pois o afundamento da sua organização defensiva permitia que os médios alemães – Pavlovic e Goretzka – jogassem de cadeirinha e encontrassem demasiadas vezes Woltemade em apoio, para este depois solicitar as entradas em velocidade dos avançados interiores. O golo parecia ser uma questão de tempo, mas apareceu só a abrir a segunda parte. E mudou tudo no jogo, porque a Portugal já não bastava segurar à espera do esticão certo. Agora era preciso jogar. E foi nesse momento em que meteu o caderno da estratégia no arquivo morto que Martínez ganhou o jogo e fintou a guilhotina que lhe caía sobre o pescoço. Podia ter feito isto logo de início? Talvez. Mas quem sabe se este virar de mesa não precisava de uma Alemanha já sem fome, saciada e pronta a ser dominada...
A virada do jogo deu pela primeira vez algum sentido àquela frase que Martínez já repetiu vezes sem conta, a de que tão importante como o onze que começa o jogo é aquele que o acaba. Após o golo de Wirtz, Portugal chamou Vitinha para o lugar de Ruben Neves e desde logo ganhou metros, porque começou finalmente a conseguir ligar jogo por dentro. Em meia-hora, Vitinha meteu mais passes em Bruno Fernandes (cinco) e Bernardo Silva (dois) do que Ruben Neves em 58 minutos (dois e um respetivamente). Além disso, o selecionador trocou um Trincão que pareceu esgotado, na sequência de uma época longa e dura, por um Francisco Conceição que replicava à direita – e com superior qualidade de definição – aquilo que Pedro Neto tinha trazido à esquerda. A saber: repentismo, velocidade e exploração do espaço. Para que o todo fizesse sentido, e Conceição pudesse aproximar-se mais de zonas interiores do que o fizera Trincão, sempre muito amarrado à linha, deu-lhe um lateral com propensão para jogar mesmo na largura (Semedo), ao invés de um que procurasse o corredor central, que era a tarefa estratégica de João Neves. E Portugal virou o jogo em dez minutos, muito em função das novidades introduzidas. Conceição empatou num lance de autor, um golo genial a vir da direita para o meio antes de bater Ter Stegen com o seu tradicional remate em arco. E Nuno Mendes, que continuou a soltar-se muito por dentro – teve sempre Neto e depois Diogo Jota à largura – protagonizou uma arrancada excelente, após tabela com Bruno Fernandes, para se isolar e oferecer a Cristiano Ronaldo o golo da vitória.
A presença na final é um marco para esta seleção, porque vai permitir-lhe disputar um título e, como Martínez disse depois, já na conferência de imprensa, a equipa começa a ter duas soluções válidas para cada posição. “No Europeu senti que nos faltavam mais jogadores capazes de entrar no onze”, afirmou o espanhol. Basta olhar para quem estava no banco neste jogo para entender que já não faltam e que o selecionador deve ser levado a sério quando diz que aspira a fazer mais do que o terceiro lugar de 1966 no próximo Mundial. Mas há que temperar a euforia, porque se é verdade que se pode ganhar uma competição de fim de época assim, a sobredimensionar a componente estratégica, parece sempre um sinal de menoridade jogar tanto em função do que o adversário nos pode fazer. Esta é uma Alemanha fraca? Não tanto. Estava fragilizada? Sim, sem dúvida, que lhe faltavam jogadores como Rüdiger, Schlotterbeck, Musiala ou Havertz. Mas podia Portugal ter ganho de outra forma, a assumir o jogo logo desde o início? Nunca o saberemos. Os últimos 25 anos dizem que não, mas isso deixar-nos-ia a todos muito mais tranquilos.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira enquanto houver equipas portuguesas no Mundial de clubes. No dia do derradeiro Último Passe de 2024/25 sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia. A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h) e apenas para subscritores Premium. A partir daí, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.
Quantos mais jogos vamos precisar para concluir que os jogadores que estão no campeonato da Arábia Saudita nada acrescentam? E não é por Ronaldo ter marcado que a conclusão deve ser outra. Entra pelos olhos adentro.